líria porto
tem gente que vem e fica
enquanto vai embora
e quando menos se espera
ronda nosso pensamento
tem gente que parte
mas não tranca a porta
*
–– a mão que governa o verso balança os muros –– (líria porto)
líria porto
tem gente que vem e fica
enquanto vai embora
e quando menos se espera
ronda nosso pensamento
tem gente que parte
mas não tranca a porta
*
líria porto
mangas maduras
esborracharam-se
ficou só uma
quem viria colhê-la
deliciar-se?
algum cão a chuparia
até amarelar o focinho?
*
líria porto
que desafio
tanta esquina tanta reta
tanta curva cada beco
passagem estreita
corredor muro parede
obstáculos - uma peleja
um imenso labirinto
*
líria porto
chuvinha mansa
molha o passeio
faz-se um versinho
no entremeio
água no fogo
para o café
fogo no rabo
dessa mulher
o pão tá quente
ovos mexidos
quem sabe a gente
(isso não digo)
*
líria porto
toda vez que eu te vir
será a última vez
então vou me despedir
de um jeito que não me esqueças
se alguma vez eu voltar
se me quiseres rever
haverá o recomeço
do que jamais teve fim
(per secula seculorum)
*
líria porto
amantes são quase amigos
(menos que namorados)
e podem ser descartáveis
(como fossem objetos)
para garantir à família
(instituição falida)
certa estabilidade
(e muita hipocrisia)
:
todos sabem - porém fingem
(fazem olhar de paisagem)
danem-se os sentimentos
*
líria porto
urubu cheirou-me as meias
depois quis minha calcinha
o sovaco da camiseta
fez uma cara de nojo
e me falou decidido
:
eca - argh
flores não fazem
meu tipo
*
líria porto
apertas o apito
depois ficas puto
disputas com os pobres
o pouco o parco
o perecível
:
temos poder sobre os ricos
somos muitos
*
líria porto
entre os muros
descarnados e sem voz
os que se foram antes
os que esperam por nós
*
líria porto
ia à praia
não molhava os pés
(medo de se resfriar)
:
aí veio a maré
*
líria porto
tenho sonhado tanto que estou perdida
que se me encontrares na tua cama
não foi de propósito
*
líria porto
casar é subir e descer escadas
com degraus de gelatina
e corrimão de suspiro
*
líria porto
pai e mãe em cima
filhas e netos debaixo
eu no meio
:
sou o recheip
*
líria porto
mamãe se chamava mundina
os mais íntimos chamavam-na munda
mamãe era mais que um planeta
*
líria porto
nem aqui nem aí
vou me encontrar contigo
num buraquinho qualquer
no meio do caminho
*
líria porto
a lua caiu no mar
quicou no fundo e voltou
atravessou toda a água
enxugou-se numa nuvem
esbarrou n'alguma estrela
e só falou
ui - que susto
rolei do céu
*
líria porto
no fundo do armário
o compartimento
onde havia antes
bolos e bombons
formigas famintas
ávidas procuram
vasculham gavetas
em busca de açúcar
*
líria porto
dialogo comigo
argumento
mas nunca me convenço
de que posso acreditar
no que duvido
*
líria porto
deixar uns pobres diabos
em cidades provisórias
e lá esquecê-los
obras recursos subsídios
como sempre - para quem
tem quase tudo
*
líria porto
converso comigo
ouço-me com atenção
resolvo alguma pendência
falo-me das intenções
reconheço erros defeitos
falhas arrependimentos
porém não me aconselho
do pouco que me conheço
sempre tive ouvidos moucos
(entra por um
sai por outro)
*
líria porto
eu tenho perdido
(e a passos largos)
o controle do corpo
a mão adormece
o ouvido ouve pouco
padecem-me as costas
as pernas a memória
(e a alma à deriva
procura respostas
para o ódio
para as guerras)
o mundo agoniza
sou um grão de areia
(inútil indevido)
com meu próprio caos
com minha impotência
não vejo saída
pra mim
pra ninguém
(e o pior
choro de barriga cheia)
*
líria porto
o amor é um pijama de flanela no inverno
um babydoll de algodão no calor
mas a paixão
esta é a pele
*
líria porto
maria boa maria má
maria cheia de graça
maria cheira e não fede
maria vai com todos
maria bonita maria ninguém
maria louca maria santa
maria maria maria josé
maria das couves
maria helena maria efigênia
maria lúcia maria luiza maria inês
maria angélica
mariângela
maricota mariana mariazinha
mariquinha marilene
marinalva
mariah
:
tantas
todas donas do nariz
*
líria porto
nesta rua crescia uma poeta
desta janela ela enxergava a lua
nesta calçada andou de bicicleta
este quintal foi seu primeiro mundo
*
líria porto
avião na pista
carro na estrada
bicicleta ônibus
até mesmo a pé
retornava à casa
:
haveria um imã
um chamariz
um clima
u'a mulher?
*
líria porto
a moça com aids
- os filhos pequenos -
tirava o sustento
na beira da estrada
à avó muito velha
deixava uma herança
as quatro crianças
e muita miséria
*
líria porto
a minha casa nas nuvens
tem cortinas de neblina
bibelôs de passarinho
(sou uma dona muito antiga
vivo no mundo da lua)
*
líria porto
cinco quartos - um para os pais
um para as três maiores
outro pras meninas pequenas
o do trio masculino
e o quarto de despejo
:
enfim acomodados
na praça getúlio vargas
os nove filhos do seu biloca
e seus badulaques
*
líria porto
mais que amores
tenho afeto desafetos
e pouco apego
gosto do coletivo
ando a pé e falo
sozinha
(sou minha
numa relação de conflito)
líria porto
no gelo no barro no vidro
nas pedras argila madeira
revejo projeto adivinho
humanas figuras
(
líria porto
a cada pessoa
uma morada no mundo
a vida na porta da frente
a morte na porta dos fundos
(poucas com muitas janelas
muitas sem janela alguma)
*
líria porto
a água rebate de encontro ao corpo
com alguma força afugenta o sono
empurra-o para o ralo
:
ficamos prontos pra lida
*
líria porto
com a ponta de uma faca
raspava manchas e névoas
(não sobrou nenhuma sarda)
começou a minar sangue
vieram as bactérias
instalaram-se as feridas
acordou apavorada
*
líria porto
se eu fosse uma boneca
queria ser da cecília
andar abraçada a ela
pra não me sentir sozinha
e quen ela fosse À escola
saísse pra passear
fosse à casa da vovó
eu iria na mochila
*
líria porto
nuns dias vinha
noutros telefonava
então se foi para sempre
deixou um vácuo - um vazio
que nenhum outro preenche
*
poema para roseane
nenhum cão cessará
a poesia que mora em ti
que inunda tuas palavras
faladas escritas
cantadas
( a esquerda também é mão)
*
reféns
não sei não sabes
nós não sabemos
em que momento
um cão um vírus
ou um tirano
farão o ataque
( a esquerda não é canhota)
*
à luta
a mão esquerda
antes restrita
recebe a rédeas
da minha escrita
e faz do verso
da poesia
a ferramenta
que necessito
(a esquerda não é canhota)
*
líria porto
o aroma da padaria
penetra minhas narinas
e o cheiro do pão quentinho
leva-me a engordar
uns dois quilos
todo dia
*
líria porto
rir em tempos medonhos
pode parecer cinismo
não é
é um esforço sobre-humano
para resistir
para não se deixar morrer
de tristeza e desespero
*
líria porto
quando eu for pra eternidade
irei vestida de sol
tomara eu tenha coragem
pra atravessar esse umbral
nem que seja num funil
enrolada em gaze azul
ou com a casa nas costas
tal qual fosse um caracol
*
líria porto
naquela noite
engravidou-se de deus
viu nascer tanto poema
uns com asas uns sem pena
outros apenas
de névoa
:
depois sangrou
ficou quieta quieta
e dormiu o sono eterno
*
líria porto
fugisse de ser madame
(daquelas do high society
talvez uma semi-hippie
até mesmo outra avozinha
ou freira velha
ou beata
mas não se achava adequada
para quaisquer modelitos
:
restou-lhe ser ela mesma
meio bruxa / benzedeira
fazedeira de milagre
avulsa
livre de cismas
*
meu leite não brotou para a primogênita
inflamou-se o meu peito para a caçula
porém a segunda - esta me mamou inteira
até mesmo quando a terceira
já habitava meu útero
*
ia de bengala - a pender pro lado
como se tentasse encostar em alguém
e movia os lábios
às vezes sorria
:
todos o olhavam
faziam comentários
as bodas de diamante
a festa no clube
a viagem de navio
(convites distribuídos
passagens compradas)
seriam mê que vem
*
a bola de neve
presa no guindaste
foi arremessada
sobre a fachada
do velho cinema
esse amontoado
de madeira e entulho
suspiros e terra
amassos e beijos
dentro do escuro
*
ralava cenouras cebolas medos
picava folhas de couve
quiabos espantos
cheiro-verde
:
até sangrar os dedos
e a solidão
*
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
líria porto
meu amor é pombajira
canta dança bamboleia
e sem peia rodopia
planta flor no meu umbigo
monta firme no meu dorso
beija lambe até mordisca
e eu subo nas paredes
trepo em cima dos telhados
solto uivos - cada grito
fico acesa igual faísca
labareda em mato seco
*
líria porto
líria porto
pandora libertou todos os males
(doenças guerras mentiras ódios)
ficou presa apenas a esperança
:
quando se abrirem as urnas
ela será libertada pela maioria
das mulheres
*
líria porto
líria porto
não ia de mala e cuia
deixava coisas pra trás
a porta entreaberta
foi/voltou vezes seguidas
com intervalo de meses
eu fingia que não via
um dia – quando partiu
preparei minha bagagem
e fui embora
co'a chave
*
líria porto