líria porto
às sete da noite
bem na linha do horizonte
peguei o sol no pulo
*
líria porto
entre os muros
descarnados e sem voz
os que se foram antes
os que esperam por nós
*
líria porto
ia à praia
não molhava os pés
(medo de se resfriar)
:
aí veio a maré
*
líria porto
tenho sonhado tanto que estou perdida
que se me encontrares na tua cama
não foi de propósito
*
líria porto
casar é subir e descer escadas
com degraus de gelatina
e corrimão de suspiro
*
líria porto
pai e mãe em cima
filhas e netos debaixo
eu no meio
:
sou o recheip
*
líria porto
mamãe se chamava mundina
os mais íntimos chamavam-na munda
mamãe era mais que um planeta
*
líria porto
nem aqui nem aí
vou me encontrar contigo
num buraquinho qualquer
no meio do caminho
*
líria porto
a lua caiu no mar
quicou no fundo e voltou
atravessou toda a água
enxugou-se numa nuvem
esbarrou n'alguma estrela
e só falou
ui - que susto
rolei do céu
*
líria porto
no fundo do armário
o compartimento
onde havia antes
bolos e bombons
formigas famintas
ávidas procuram
vasculham gavetas
em busca de açúcar
*
líria porto
dialogo comigo
argumento
mas nunca me convenço
de que posso acreditar
no que duvido
*
líria porto
deixar uns pobres diabos
em cidades provisórias
e lá esquecê-los
obras recursos subsídios
como sempre - para quem
tem quase tudo
*
líria porto
converso comigo
ouço-me com atenção
resolvo alguma pendência
falo-me das intenções
reconheço erros defeitos
falhas arrependimentos
porém não me aconselho
do pouco que me conheço
sempre tive ouvidos moucos
(entra por um
sai por outro)
*
líria porto
eu tenho perdido
(e a passos largos)
o controle do corpo
minha má adormece
o ouvido ouve pouco
padecem-me as costas
as pernas a memória
(minha alma à deriva
procura respostas
para o ódio
para as guerras)
o mundo agoniza
e eu - grão de areia
(inútil indevido)
com meu próprio caos
com minha impotência
não vejo saída
pra mim
pra ninguém
(e o pior
choro de barriga cheia)
*
líria porto
o amor é um pijama de flanela no inverno
um babydoll de algodão no calor
mas a paixão
esta é a pele
*
líria porto
maria boa maria má
maria cheia de graça
maria cheira e não fede
maria vai com todos
maria bonita maria ninguém
maria louca maria santa
maria maria maria josé
maria das couves
maria helena maria efigênia
maria lúcia maria luiza maria inês
maria angélica
mariângela
maricota mariana mariazinha
mariquinha marilene
marinalva
mariah
:
tantas
todas donas do nariz
*
líria porto
nesta rua crescia uma poeta
desta janela ela enxergava a lua
nesta calçada andou de bicicleta
este quintal foi seu primeiro mundo
*
líria porto
avião na pista
carro na estrada
bicicleta ônibus
até mesmo a pé
retornava à casa
:
haveria um imã
um chamariz
um clima
u'a mulher?
*
líria porto
a moça com aids
- os filhos pequenos -
tirava o sustento
na beira da estrada
à avó muito velha
deixava uma herança
as quatro crianças
e muita miséria
*
líria porto
a minha casa nas nuvens
tem cortinas de neblina
bibelôs de passarinho
(sou uma dona muito antiga
vivo no mundo da lua)
*
líria porto
cinco quartos - um para os pais
um para as três maiores
outro pras meninas pequenas
o do trio masculino
e o quarto de despejo
:
enfim acomodados
na praça getúlio vargas
os nove filhos do seu biloca
e seus badulaques
*
líria porto
mais que amores
tenho afeto desafetos
e pouco apego
gosto do coletivo
ando a pé e falo
sozinha
(sou minha
numa relação de conflito)
líria porto
no gelo no barro no vidro
nas pedras argila madeira
revejo projeto adivinho
humanas figuras
(
líria porto
a cada pessoa
uma morada no mundo
a vida na porta da frente
a morte na porta dos fundos
(poucas com muitas janelas
muitas sem janela alguma)
*
líria porto
a água rebate de encontro ao corpo
com alguma força afugenta o sono
empurra-o para o ralo
:
ficamos prontos pra lida
*
líria porto
com a ponta de uma faca
raspava manchas e névoas
(não sobrou nenhuma sarda)
começou a minar sangue
vieram as bactérias
instalaram-se as feridas
acordou apavorada
*
líria porto
se eu fosse uma boneca
queria ser da cecília
andar abraçada a ela
pra não me sentir sozinha
e quen ela fosse À escola
saísse pra passear
fosse à casa da vovó
eu iria na mochila
*
líria porto
nuns dias vinha
noutros telefonava
então se foi para sempre
deixou um vácuo - um vazio
que nenhum outro preenche
*
poema para roseane
nenhum cão cessará
a poesia que mora em ti
que inunda tuas palavras
faladas escritas
cantadas
( a esquerda também é mão)
*
reféns
não sei não sabes
nós não sabemos
em que momento
um cão um vírus
ou um tirano
farão o ataque
( a esquerda não é canhota)
*
à luta
a mão esquerda
antes restrita
recebe a rédeas
da minha escrita
e faz do verso
da poesia
a ferramenta
que necessito
(a esquerda não é canhota)
*