sexta-feira, 27 de novembro de 2015

consolo

líria porto

quando o compadre se foi
de tanta tristeza
a comadre secou as lágrimas
no ombro d'outro homem

*

em família

líria porto

cinzas ou ossos
(por mim tanto faz)
quando chegar a hora
joguem em qualquer lugar
ou façam sabão

*

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

piedosa

líria porto

a lua no céu
o seu manto de neblina
mulher de mantilha

*

cela

líria porto

neste mesmo corpo
eu já fui menina
mocinha
mulher feita
mas cedi lugar
(de boa vontade)
à septuagenária
que faz uso dele
como seu abrigo

(qualquer hora apeio)

*

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ovelha

líria porto

tosaram-me a lã
e agora
sem meias melenas
torro os miolos
e espero
o capim crescer

*

terça-feira, 24 de novembro de 2015

haicai

líria porto

cheiro de alho frito
nas grimpas do mamoeiro
duas cotovias

*

artesanal

líria porto

desencaroçar as letras
desfiar bem as palavras
e depois tecer o verso
:
malha fina

*

ovelha

líria porto

tosaram-me a lã
e agora
sem meias melenas
torro os miolos
e espero
o capim crescer

*

sábado, 21 de novembro de 2015

conservadores

líria porto

o mofo sobre o telhados do casarão
talvez reflita o que vai pela cabeça dos proprietários
essa gente que conserva teias de aranha e poeira
no sótão e no porão das ideias

*

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

mudança de hábito

líria porto

o véu branco
o manto escuro
o celular no ouvido
a freira olvidou cristo
ou o céu ficou moderno?

*

o crime

líria porto

cadê o rio que tava aqui? a samarco bebeu
cadê a samarco? foi pro mato
cadê o mato? a samarco comeu
cadê a samarco? foi ao povoado
cadê o povoado? a samarco engoliu
cadê a samarco? foi matar peixe
cadê o peixe? a samarco matou
cadê a samarco? tá na lama
cadê a lama?
:
tá por aí
por aí
por aí

*

a sorrateira

líria porto

sempre a rondar os viventes
e de repente ela zás
cata um
leva consigo
pra terra do nunca mais

*

persona

líria porto

aqui ali não sei onde
busco palavras pros versos
não as encontro espero
espero espero
espero-las

*

o capitalista

líria porto

não era louco
era mau

trocava a vida
por lucro

não a sua
a dos outros

e punha tudo no bolso
aquele desgraçado

*

cataplasma

líria porto

pus a compressa sem pressa
o furúnculo veio a furo – o vulcão soltou a lava
aquela baba
:
que alívio

*

terça-feira, 17 de novembro de 2015

extremos

líria porto

por amor
deu a roupa do corpo
tornou-se subalterna
pensou que era amor
e não era
:
por desamor
tornou-se uma megera

*

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

bastilha

líria porto

vós paris um mundo vil
não podeis mais renegá-lo
ristes dos pobres
dos humildes
e sentis nos próprios calos
o peso dos vossos pés
e dos vossos passos

*

aprendizado

líria porto

tem coisa que a vida nos ensina
tucano é ave de rapina

*

logro

líria porto

três blefes regem as guerras
e o homem cai como pato –– barras de ouro
de terra e também barras
de saia

*

amolação

líria porto

tem gente que não vive sem polêmica
tem gente que não vive sem picuinha
tem gente muito chata
insistente
igual motorzinho de dentista

*

dinheiro

líria porto

tal como água
uns bebem demais
outros passam sede

*

sábado, 14 de novembro de 2015

banguela

líria porto

o que salvou daquele dente
só a raiz
:
e sobre ela replantou
um que sorri

*

gatilho

líria porto

pariste a treva
não te atrevas a entrever
com teus olhos de través
toda a nossa miséria
:
pode ser o estopim

*

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

ilusões

líria porto

andei
atrás
do impossível

feri
os pés
com cavacos

sangrei
até
esvair-me

deixei
no chão
os vestígios

dos sonhos
despedaçados

*

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

sujeira

líria porto

santa máquina maria
lava roupa muito bem
não exige quase nada
sabão água amaciante
pouquíssima energia
nenhuma manutenção

*

previsão do tempo

líria porto

brisa para as crianças
para os velhos
                 vendaval

*

omissos

líria porto

os que não estão
nem pró nem contra
são a favor

*

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

abalo

líria porto

a terra deu de tremer
não antes – depois
de revolta e dor

*

terça-feira, 10 de novembro de 2015

das mediocridades

líria porto

um rio de lama –– sujeira tóxica
(crime inafiançável)
e a gente a fazer conta da poeira nos móveis
das manchinhas no lençol

*

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

flash

líria porto

poesia é susto é espanto
sequer existe um propósito

*

domingo, 8 de novembro de 2015

ordem de despejo

líria porto

nascido com ele crescido com ele
o velho rejeita o corpo estranho

*

raios me partam

líria porto

a nuvem esbarrou na nuvem
ouviu-se o maior trovão

pareceu coisa maciça
pedra que virou brita

arrufos do vapor

*

mãos à obra

líria porto

para o projeto eu já tenho
um caderno cor de terra
(vindo de rio claro)
a estrofe de lápis verdes
e versos represados

eu vou fazer um bom livro
mesmo que demore
(assim eu adio a morte)
deixá-lo pra maricota
deixá-lo para o francisco

*

mariana

líria porto

quem lava o estouro da lama
quem ressuscita os mortos
quem purifica o chão
quem desenterra a esperança
quem seca as lágrimas
:
quem paga?

*

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

descalços

líria porto

tapete vermelho
lava incandescente
bolhas nos pés afeitos
às derrotas
:
sol nos olhos – cegueira – e no pódio
os sadomasoquistas

*

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

poda

líria porto

vou podar tuas ramas
assim tu
tão mimada tão rebelde
tão parecida comigo
não derramarás sobre mim
tuas vontades
tuas manhas

*

inflável

líria porto

a bola rola pra lá
pra cá
parece brincar sozinha
será o vento algum anjo
alguma alma penada
um fantasminha?

*

ah é?

líria porto

perguntas tolas nocauteiam a conversa
perguntas sábias revigoram-na – mesmo que não tenhamos
as respostas

*

treta

líria porto

chamava as concorrentes de bodinhas
ela própria uma cabra velha do rebanho
do coronel

*

a cabrita

líria porto

pasto teus bigodes e espero sinceramente
que a tua dona não se incomode

*

terça-feira, 3 de novembro de 2015

água com açúcar e uma gota de fel

líria porto

conheci-o em novembro
em dezembro mandou flores
mas eu tinha compromisso
com outro homem

trocamos cartas bilhetes
durante meses e meses
espalhou-se o nosso amor
como hera na parede

durante o chove não molha
apareceu julieta
foi assim que aconteceu
o romance do milênio

*

ao poeta

líria porto

quando eu me flor
despetala-me
guarda-me dentro do livro
e eu me seque às palavras
que me escreveste
e que li

*

lágrimas de crocodilo

líria porto

de que lhe adiantam
o caixão de luxo as coroas de flores
a música póstuma
se jamais lhe fizeste serenatas
enviaste-lhe bombons ou buquês
de rosas

(só se foi para aliviar
a culpa)

*

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

da obesidade

líria porto

um grande peso nas coxas
nos braços glúteos e mamas
tudo aumenta com o tempo
só a memória descamba

(nem me falem de ginástica
no máximo a caminhada
em torno do quarteirão)

*

centelha

líria porto

alinhei-me pela esquerda
primeira letra do verso
jamais em cima do muro
melhor margear o abismo
que rolar para a direita
silenciar-me omitir-me
ou bater panelas

*

(sem) escolha

líria porto

eu que não tenho
certeza de nada
afirmo com segurança
ainda neste século
seremos cinzas
ou ossos

o que preferes
cemitério ou crematório?

*

domingo, 1 de novembro de 2015

cremação

líria porto

façam sabão co'as as cinzas
lavem chão lençóis fronhas
que o corpo não exista em vãos
limpe a sujeira que fez

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

Arquivo do blog