domingo, 30 de outubro de 2016

equívocos

líria porto

a poesia pode ser óbvia
o poema não
se a mão do poeta pesa
a poesia se encolhe
e enquanto empalidece
palavras tropeçam
em si próprias

*

uno

líria porto

eu não sou eu sou nosotros
formamos um coletivo
lutamos todos por todos
por semelhantes motivos

tua fome é minha fome
teus medos meus calafrios
somos gente somos bichos
nasceu de ti é meu filho

(couro pele pena escama
precisamos proteger-nos
dos terríveis predadores
de todo e qualquer perigo)

*

escravidão

líria porto

limpo tudo
(um esforço desgraçado)
o cupim disfarça-se de aleluia
chega manso desveste as asas
entra no armário enche a pança
e caga

*

sábado, 29 de outubro de 2016

poeminha doméstico

líria porto

consigo lavar dois banheiros
com meio balde d'água
ficam tão limpinhos
perfumados
na próxima encarnação
posso ser arrumadeira
:
nesta não – de mim afasto
esse carma

*

pianíssimo

líria porto

com a vassourinha
movida a bateria
limpo o assoalho 
e leio quintana
:
só assim
a jornada dupla

*

donana

líria porto

ontem ria com todos os dentes
hoje sorri com um leve movimento dos lábios
nem disfarça a tristeza

*

projétil

líria porto

bala de chumbo
penetrou seu peito
alojou-se fundo
e embora não sangre
padece de amor
sem saída

*

o oportunista

líria porto

escorrega para a zona de conforto
como a merda do intestino
para o esgoto
:
semelhanças não são meras
coincidências

*

argumentos

líria porto

fosse qual fosse
alface couve espinafre
não gostava de verde
:
também não queria tomate
preferia marrom ao vermelho
(chocolate)

serve cocô perguntaram-lhe
nem respondeu – devorou a salada
e gostou

*

tumulto

líria porto

tenho a bandeira vermelha
o touro quer sangue

fustigo-o até que se canse
também fico exausto

a luta é de grandes

*

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

caça

líria porto

a poesia é um pássaro
o poeta um menino com bodoque
ou espingarda de chumbinho

(o poeta
um aprendiz
de assassino)

*

terça-feira, 25 de outubro de 2016

corpos

líria porto

encaixe perfeito
as asas da borboleta
pegadas na areia

*

borderline

líria porto

entre a lucidez e a loucura
lugares por onde trafegam
poetas sonhadores
libélulas

*

disperso

líria porto

norte sul leste oeste
vagou por tudo quanto
perdeu-se

precisou retornar
o vento era contra - a chuva
a favor

*

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

tragicomédia

líria porto

a vida –– essa peleja
uma batalha sem trégua
a gente faz o diabo
rói as unhas
arranca os cabelos
mata um leão por hora
nada contra a correnteza
(usa todos os chavões)
até que a morte apareça
e passe a régua

*

domingo, 23 de outubro de 2016

reticente

líria porto

aqui ali onde seja
que as certezas se instalem
duvido da consistência
nada é incontestável

*

sábado, 22 de outubro de 2016

carruagem

líria porto

no mundo dos sonhos
(nossa outra vida paralela)
o resgate do tempo
as lembranças
as pessoas que se foram para sempre
nossos medos e desejos

nesta noite eu não tinha oito anos
caminhava de mãos dadas com vovô
o mais lindo libanês levou-me
à frança

(acordar é um choque épico
e eu era a rival da minha avó)

*

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

maria fumaça

líria porto

sou minha mãe minha filha
(quem me cuidava se foi
quem cuidei não me precisa)
vou eu por mim
(tenho me saído bem)
e em breve serei minha avó
(velha além da conta)
então irei à estação
com passagem
só de ida

*

correria

líria porto

os dias passam
como se usassem patins
voam e trepidam

*

(in)flexível

líria porto

mudo de ideia
mudo de posição
mas não fico mudo
nem cego nem surdo
perante a injustiça
:
não sou uma pedra

*

enxurros

líria porto

como o trovão e a nuvem
papai dava a bronca
eu chorava

(eu sou a cara da chuva)

*

terça-feira, 18 de outubro de 2016

(des)conhecimento

líria porto

cerramos as pálpebras
reviramos os olhos
miramos o inconsciente

(decifremos nossos códigos)

acordados
nossas pupilas perscrutam
a realidade?

(nós temos dois mundos
o de dentro o de fora)

*

affffffffffffff

líria porto

a fama da foda
a fêmea do fubica
a fístula da febre
a fofura da filha
o furo da fábula
:
a fofoca

*

poetice

líria porto

a vida num parágrafo
talvez numa estrofe
numa trova

não há rimas
para as flores 
do pântano

*

meio-dia

líria porto

fincado igual prego
em cima da sombra
no ponto de ônibus

*

domingo, 16 de outubro de 2016

haicai

líria porto

sábado de outubro
a lua feita a compasso
embrulhada em nuvens

*

programação

líria porto

se a morte aparecer
não tiver ninguém por perto
para cuidar dos detalhes
tomara dê-me algum tempo
para destrancar a porta
ajeitar os cabelos
e pintar os lábios

(se ela não tiver pressa
ainda visto a mortalha
deito co'as mãos
no peito)

*

uterino

líria porto

alimento colchão filtro
seja o que for é um tanto nojenta
a placenta

quando fiquei pronto e vi o mundo
berrei como um bezerro

*

sábado, 15 de outubro de 2016

obesidade

líria porto

perdeu a noção dos limites
invadiu as próprias bordas
produziu estrias

*

mazela

líria porto

naftalina
moça recatada
do lar
com o mordomo
do castelo

*

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

de brumas e brisas

líria porto

o marido abominava
as calçolas no arame

(cuecas podia)

madame radicalizou
agora é de vento
em popa

*

à queima roupa

líria porto

bastava um tiro
o resto era tara
de assassino

*

fictícios

líria porto

não o que fomos o que somos
mas o que gostariam que fôssemos
no que poderiam nos transformar
:
assim nos amam
como seres imaginários
como personagens dos seus sonhos

*

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

destilado

líria porto

toda vez que a gente dorme
bebe uma dose de morte

(se for um copo desmalha)

no dia do sono eterno
entorna o alambique 

*

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

circo

líria porto

a vida me diz –– tu não podes
passo debaixo da lona e assisto o final
do espetáculo

*

domingo, 9 de outubro de 2016

custosa

líria porto

um redemunho na testa
outro no cocuruto
a menina não tem peia
não mandam nela
os adultos

é fazedora de arte
queixa-se a mãe para a avó
e a caduca a aplaude
tem uma herdeira
isso é ótimo

*

cirandinha

líria porto

belas manhãs
claridade
a primavera é uma festa
além das flores
nas árvores

*

do avesso

líria porto

entre nós – furos
desculpas esfarrapadas
e por debaixo dos panos
a vida sem alinhavo

*

meia lua

líria porto

papoula cor de uísque
vou na proa dessa barca
sem leminski
:
só com alice

*

sábado, 8 de outubro de 2016

mandamentos extras

líria porto

não trazer para casa o que não podes comer
não adquirir o que não ousas usar
não dizer sim para todo prazer
não soltar a franga

*

abandono

líria porto

fez mais que o necessário por um resultado
e o que obteve foi proporcional ao contrário
de tudo que sonhava

(no caso houve sorte
livrou-se do encosto)

*

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

somenos

líria porto

a nossa pele do avesso
e ninguém vai saber qual é branca
qual é preta

*

lanterninhas

líria porto

o sol cai
estrelas brilham
clareiam a trilha
pra lua reinar

*

nosotros

líria porto

os ossos todos juntos
na mesma vala comum
ou então as nossas cinzas
numa única urna

(que nada e ninguém nos distinga
pelo que um dia fomos ou parecíamos
ser)

mendigos e príncipes

*

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

temperamental

líria porto

igual cacto –– polpa carnuda
flores cuidados simples
e unhas

*

violência

líria porto

o amor
custa caro

o ódio é gratuiro
distribuído às pancadas
ou panfletado nas ruas

*

gota d'água

líria porto

a fonte secou
a sede não cede
e o que pedem?
:
(h)umi(l)dade

*

pretextos

líria porto

os fatos
mesclados de pequenas ilusões
capazes de apaziguar as
                            consciências

*

passagem

líria porto

atrás da neblina o sol
o farol que ilumina o caminho
e indica a direção

*

excitação

líria porto

lava
do porão à proa
e mesmo que navegue
ou naufrague
o mar não apaga
esse fogo

*

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

príapo

líria porto

deus menino tem um pinto
o dia a brincar com ele
o pinto dorme
o piá acorda-o
acaricia-o e sente
aquele arre_
pio

deus menino tem um pinto
(mais importante que ele)
que um dia vai ser galo
:
rei do galinheiro

*

saudosismos

líria porto

tenho um cofre para guardar ninharias
quando não me resta coisa alguma
elas me aliviam

(um caco de xícara uma flor seca
um disco quebrado
a bandeira ultrajada do meu país
a roupinha do meu filho)

*

o pastor

líria porto

vendia lotes no céu
mas não garantiu o seu
no dia que ele morreu
o diabo amarrou-o
enfiou-lhe um tridente na bunda
chamou-o de concorrente
levou-o para as profundas

*

lábia

líria porto

nesse jogo de palavras – além da língua
vence quem tem saliva

*

o plano

líria porto

a navalha
um talho na jugular
o vermelho a tingir-lhe o peito
e ponto

(cortar os pulsos ficou fora
de moda)

*

domingo, 2 de outubro de 2016

carcomidos

líria porto

o prato que te ofereço
é marmita requentada
pois que perdi o traquejo
não faço mais pão de queijo
nem macarrão alho e óleo

secaram-se nossos molhos
na torneira não tem água
e o contexto é mais pobre
que os panfletos da igreja
e as notícias do governo

(que a morte venha –– mas antes
a revolução)

*

hipnose

líria porto

os tiranos têm um imã
um brilho agudo

(serpentes
olham fixo
e devoram
passarinhos)

*

sábado, 1 de outubro de 2016

nem vem

líria porto

(sou de paz
mas pombos não cagam
em meu ombro)

*

biológica

líria porto

às vezes fico flora de mim
às vezes fico fauna
e viro bicho

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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