quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

corpo velho

líria porto

tal como o barraco na encosta do morro
exposto à tempestade à ventania
desabo a qualquer momento
não tenho alternativa

*

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

apressa-te

líria porto

a vida ruge
o tempo que me resta é pouco
estou de mala e cuia

*

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

dissipações

líria porto

canto de cigarra asa de libélula
nuvem de fumaça gelo ao sol

*

im_possibilidades

líria porto

toda vez que fico assim
à flor da pétala
alguém se apodera de mim

bem me queres mal me queres
atormentam-me com perguntas
que não sei responder

*

buraco negro

líria porto

nos abismos do poema
jogo-me dia após dia
mas só ficarei contente
quando for tragada
inexoravelmente
pela gravidade
da poesia

(sem jamais tocar-lhe o fundo)

*

corresponsáveis

líria porto

esconjuro a nuvem que cai de uma vez
arranca as lascas do morro e suja
as ruas

cuidamos do lixo ou isso
é desnecessário?

*

domingo, 27 de janeiro de 2013

triângulo

líria porto

casada com a vida
namoro a morte

hora dessas
caio nos braços daquela
de forma definitiva

*

meta

líria porto

sigo os trilhos tenho um rumo
o que encontrar eu assumo
ou então sumo de vez

*

desembestada

líria porto

apita na curva
trilha o caminho
do trem

um louco
motiva-a

vai vai meu bem
vem

*

haicai

líria porto

as gotas de orvalho
sobre as folhas do capim
parecem cristais

*

sábado, 26 de janeiro de 2013

chuvada

líria porto

o céu despenca
qual um rio vertical
:
passarinho vira peixe
essa vida
               um lamaçal

*

descomunal

líria porto

e se os seus dentes sangrassem a hóstia
e o papai do céu a condenasse
ao fogo eterno?

*

aporrinhação

líria porto

não me apontes não me pontues não me julgues
nem te ponhas reticente a tudo quanto vivi
pois que escolhi a ti mas posso
voltar atrás

*

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

monotonia

líria porto

se eu fosse uma princesa
dormisse com a lua acesa
tivesse um amor à mesa
e não sentisse tristeza
ainda assim eu fugia
iria buscar minha rima
num brejo

*

gulosa

líria porto

ser branca de neve
mais pela mordida na maçã
que pelo príncipe e os sete
anões

*

fachada

líria porto

andei de braços dados com teus ternos
porém nunca estiveste dentro deles
comigo tu ficavas sempre ausente
e eu me obrigava a manter
as aparências

*

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

lágrimas no varal

líria porto

se o sal corroer o arame
o mundo vai despencar
derrubar toda a ânsia

(hoje a tristeza caminha
na corda bamba)

*

esculpidas em carrara

esculpidas em carrara

malu e ana luíza
quase a mesma idade
amigas e primas

tão parecidas e lindas
são semigêmeas?

*

sina

líria porto

eu dei um jeito no vento
pu-lo ao colo de_vagar
contei-lhe histórias de brisa
de crianças boazinhas
ele ouviu-me desatento
escapou na correria

lá de longe ele gritou
eu sou o vento vovó
e ventar é meu destino
vou brincar co'a maricota
correr atrás do zezinho
voar voar e voar

*

comodismo

líria porto

ser a primeira é um peso
ser a segunda alivia-a
ser a caçula é um risco
pode-se inverter
a fil(h)a

prefere estar no recheio
ficar ali –– sem ser vista
nesta zona de conforto
fingir-se morta
é possível

*

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

rapina

líria porto

abre as asas sobre o toco
fica a esperar a morte
(não a sua – a de outro)
para sustentar-lhe
o voo

(urubu pairava em círculos
lá no céu um aeroplano
a vigiar as carcaças
a limpar toda a carniça
com seu bico instruído
para descarnar
cadáver)

*

cerzidos

líria porto

eu na rua ele na rua
perguntou-me se podíamos
disse sim sem titubeio
desde então todos os dias
nunca mais nos separamos
tornamo-nos um par
de meios
:
tão iguais tão diferentes
como todos os casais
com remendos no dedão
buracos no calcanhar

*

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

ávido

líria porto

sinto a sede do mar
bebi todos os rios e continuo
com sal na língua

*

caolho

líria porto

o direito enxerga o outro
o esquerdo – quase nada
o direito é precioso
o esquerdo é uma lástima
:
ou seria o contrário?

*

contramão

líria porto

nada em mim me obedece
(coração mãos pés boca)
menos ainda a cabeça
que sabe de cor e desliza
por devaneios
:
como a brisa

*

tufão

líria porto

abro os braços
giro o corpo
fico à beira
da loucura

é uma eterna
brincadeira
um saltar
no escuro

vou ao fundo
e no impulso
ultrapasso
a nuvem
:
beijo a boca
de são pedro
faço amor
com lúcifer

*

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

a anciã

líria porto

corpo curvado e nas costas
o peso de nove décadas
:
casca envergada à terra
alma apta para o voo

*

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

o viúvo

líria porto

qual um sonâmbulo
fareja cheiros nos cantos
as suas roupas no armário
e quando se senta à mesa
fica assim – a olhar o prato

cobertores não o esquentam
as suas noites são longas
mas permanece casado
com uma sombra
uma ausência
:
consolam-no
os filhos

*

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

negócio

líria porto

eu
arrimo de mim
arrumo-me como posso

o que era nosso é só meu
dá-me um trabalho do cão
:
quando acertar outro sócio
vai ser mais macio que o capim
onde cochilo

*

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

momentos

líria porto

vínculos emoções sentimentos
e até esquecimentos necessários
(des)construídos ao longo da vida
isso é passado e parte
da nossa história

sobre o futuro 
ele não existe

*

domingo, 13 de janeiro de 2013

infiltração

líria porto

entrou pela porta dos fundos
lavou os copos os pratos
necessitou tomar banho
usou a minha toalha
o roupão o sabonete
dirigiu-se até meu quarto
recostou-se em minha cama
cobriu-se com as cobertas
acordou pôs meus chinelos
as roupas pegou no armário
:
sentiu-se bem com direitos
fez de mim gato
e sapato

*

sábado, 12 de janeiro de 2013

pavio curto

líria porto

já não tem mais fôlego paciência
para sustentar contestações
fala sim ou não ou simplesmente
cala sua boca e abre mão

*

o menino

líria porto

beijo-lhe as bochechas
e a testa e seu nariz
também beijo-lhe os pezinhos
os joelhos a barriga
não existe neste mundo
um perfume que eu prefira
mais que o cheiro de um bebê
recém-nascido

*

matriz e filial

líria porto

ela é mãe dos dez legítimos
eu sou a mãe dos bastardos

ele tem catorze filhos
o felizardo

*

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

tempo

líria porto

falou que a vida era breve eu não cria
até que eu - cria dela - alcancei maior
idade

*

enredo

líria porto

logo cedo eu me levanto
digo olá ao novo dia
encaminho-me ao banheiro
dou bom-dia para o espelho
(santo dio eu fiquei velho)
faço tudo que preciso
privada banho higiene
tomo os medicamentos
café leite pão e queijo
(a caminhada eu adio)

leio os jornais um livro
telefono para os filhos
peço notícia dos netos
falo com meus amigos
e passo as demais horas
a fazer algum versinho
antes que a sorrateira
empurre-me pela ladeira
para o fundo de uma cova
e jogue terra por cima

*

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

e_vidente

líria porto

a lua entre os dedos e no alforje
o dragão de são jorge e as estrelas

*

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

(des)grama

líria portoa

o amor tece a trama
amortece as bacadas
põe-nos em camas macias
e (des)confortáveis

*

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

manchete

líria porto

a notícia é um dardo
na direção do escândalo

*

diário

líria porto

os quebrados os murchos os carunchados
separo os grãos de feijão e me vejo
com as mãos de minha mãe

saudades de seda

*

domingo, 6 de janeiro de 2013

re_correntes

líria porto

acostumados a caminhos invisíveis
os pensamentos voam e voltam
passarinham

*

possuída

líria porto

toca
meu corpo
distrai-me
a alma

falo
sua língua
sinto-a
na goela

anjo
não é santo
e tem
sexo

*

sábado, 5 de janeiro de 2013

nona

líria porto

passos curtinhos
vidinha lenta
os pensamentos
são quase brisa
pois que a velhice
como o inverno
precisa manto
meias e vinho

(tricô dá tendinite)

*

perturbações

líria porto

aflições medos pensamentos conturbados
obstáculos que criamos na hora de enfrentar
as próprias falhas

*

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

tônica

líria porto

numas vezes fico grave como acento agudo
noutras flano como um til
:
só coração

*

bílis

líria porto

o peso de um pensamento
capaz de tirar o sono
bem pior que pesadelo
pode repisar o fígado
extrair-lhe um caldo verde
e amargar-nos a boca

*

ímã

líria porto

por mais amplo que o mundo seja
não adianta mudares de rumo
teu destino sou eu

*

enrugadas

líria porto

as minhas mãos calejadas
tanto trabalho forçado
cansaram-se e nada fazem
não cozinham não tricotam
mas também não se aposentam
cismadas em fazer versos
em transcreverem o que penso

*

pavio

líria porto

corpo - cera que derrete
alma chama que
arde

*

fachada

líria porto

o corpo é minha casa
os ossos que lhe dão sustentação
enchem-se de ferrugem

a pintura cheia de manchas
já não faz bela a figura
mas a alma que me habita
aprecia a estampa

*

impaciência

líria porto

no natal eu não quis presentes
quis o papai noel sem roupa
mas não tive saco

papai noel era um chato

*

homem

líria porto

não digas o que não sentes - não precisas
prefiro o silêncio às mentiras

*

no pasto

líria porto

olhos pretos
tetas grandes língua áspera
espera o quê neste vácuo?

*

retorno

líria porto

os braços fortes do sol
enlaçam o horizonte
bom dia bom dia bom dia
o vento persegue a brisa
os homens vão à deriva
os pássaros voam
:
o mundo gira

*

roça

líria porto

no céu as estrelas no chão vaga-lumes
no meio do espanto  felizes da vida  a maricota
e o zezinho

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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