domingo, 29 de junho de 2014

jabuti

líria porto

o cágado a tartaruga
uma ruga dentro
                  do casco

*

desamparo

líria porto

maria choveu enxurrou encolheu-se
e ninguém enxugou os rios que escorriam
dos seus olhos

*

secura

líria porto

pisar repisar uvas verdes
retirar suco de pedra

*

sábado, 28 de junho de 2014

erosão

líria porto

falavas-me de tempestades
enchentes aluviões
não dos chuvisqueiros
e respingos

quero a garoa
a conversa mansa
que faz brotar
a lavoura

*

emergência

líria porto

troca-se
o velho coração
repleto de afetos
a ponto de explodir
por outro moderno
com vãos livres
alarmes
porta giratória
e saída de fuga

*

sexta-feira, 27 de junho de 2014

derrota

líria porto

há dias de poema algum
versos camuflados palavras ocultas
borrão nas letras
:
dias de lixeira
e mudez

*

quinta-feira, 26 de junho de 2014

ocorrências

líria porto

a bruxa mocreia
de olheiras tão roxas
odor de gambá

quatro mariposas
em volta da lâmpada
voam e revoam

diabo capeta
seu cheiro de enxofre
fedor de morrinha

lagarta peluda
calombo coceira
cicatriz futura

a lua de agosto
o rabo entre as pernas
o cachorro doido

*

centopeias

líria porto

pés articulados presas venenosas
eu fujo das lacraias elas fogem
das corujas

*

terça-feira, 24 de junho de 2014

viuvez

líria porto

quem vem para o frio
quem vem para o chá
eu fervo e não há
quem me adoce

*

unguento

líria porto

para aliviar a vida
dar-lhe algum alento
só tenho comigo
lápis e papel
porém não consigo
meu verso é pequeno
não toca profundo
as dores as feridas
que maltratam
as lendas

*

segunda-feira, 23 de junho de 2014

pupila

líria porto

ao sabor do vento
é que entro no olho
do furacão

como um cisco
um fragmento
um corte na pálpebra

*

domingo, 22 de junho de 2014

cota

líria porto

(meu homem não dorme comigo
sou a outra –– a sócia
minoritária)

*

loucura

líria porto

confundiu as horas
cantou o tempo todo
(manhã tarde noite)
o galo ficou rouco
deixou o sol maluco
a lua neurótica

*

por fora

líria porto

vovó governava vovô
pensava assim garantir-se
mas o danado do velho
teve no desvio
mais um outro filho

*

arrudas

líria porto

não tive mar
meu rio virou esgoto
a transportar bosta e mijo
por baixo dessa avenida
que lhe esconde
a vergonha

*

(peguei o sol no pulo) arquitetura

líria porto

palavras pensamentos gestos emoções
e mais que tudo – um poema é feito
de susto

*

o menino

líria porto

inventa palavras olhares sorrisos
esse é francisco – meu neto de três anos
quando ele chega pleno de alegria
parece haver guizos brilhos
e faíscas

*

arado

líria porto

a junta de bois
a rasgar o chão
remexer a terra
afundar os sulcos
para o plantio
do feijão
do milho

(a enxada
deixada no canto
repousa calada
merece o descanso)

*

bucha de canhão

líria porto

o homem pobre
é de alguma forma
a massa de manobra
usada pelo rico
para garantir
vantagens
benefícios
à sua vida pífia

*

únicos

líria porto

podemos ser amados pelas qualidades
talentos aparência
também pelos erros faltas e defeitos
pelo simples fato de sermos
nós mesmos

*

gatilho

líria porto

cisco no olho pedra no sapato
fome dor ou sede – pequeno salário
podem dar ao homem a motivação
pra mudar as coisas e lutar por outra
relação de forças

*

fatídico

líria porto

a lua plena de maio
que outrora me enchia os olhos
d'agora em diante deságua-os

(eu vou morrer de saudades)

*

quarta-feira, 18 de junho de 2014

engasgo

líria porto

raramente somos um só
agora estou – eu só eu
com uma faca no peito
e um nó na garganta

*

repescagem

líria porto

a névoa embaça-lhe o olhar
nos cantos da boca o silêncio
a dor na carne nos ossos
procuro a mulher suculenta
pergunto cadê minha mãe
que se perdeu de si mesma
nas brenhas do esquecimento

toco seu rosto os cabelos
recordo o cheiro do leite
aperto seus dedos trêmulos
e sinto aquela saudade
de quando ainda menina
agarrava-me à sua saia
só para tê-la por perto

na cama a casca resiste
eu fico triste a pensar
na sua breve partida
tantos a esperam por lá
onde residem as estrelas
seus pais seu amor
sua filha

*

várzea

líria porto

pendurei as chuteiras
já não suporto bolas divididas
nem ter que matá-las
no peito

*

capitalismo

líria porto

umas mãos pescam as ostras
outras mãos usam as pérolas

*

terça-feira, 17 de junho de 2014

hibernação

líria porto

uma topada no dedo
uma palavra rombuda
o dia foi do avesso
a noite veio contudo
nem sonho nem pesadelo
dormi como um urso

*

borracha

líria porto

esclarecidos os fatos
tirar os pingos dos iis
que é para não nos restar
nenhum resíduo de dúvida
nenhuma mágoa

*

segunda-feira, 16 de junho de 2014

sádico

líria porto

com a ponta do dedo
cavoucas a minha dor
puxas com tua unha
o meu desespero

*

além

líria porto

voo e vinho
volto para onde
fiquei sem estar
estive sem sair
e a tua estrela
brilha

no espaço de ti
que partiste
e aqui continuas
do lado de dentro
da pele

*

cuidado

líria porto

pesar as palavras medi-las
polir as pesadas as brutas
soldar as quebradas
:
(merda é esse embrulho
no estômago)

*

domingo, 15 de junho de 2014

absorventes

líria porto

já fez versos de silêncio escritos dentro do útero
usava tinta vermelha – não conseguia detê-los
quando os paria eram gritos

*

sábado, 14 de junho de 2014

momento

líria porto

quem move esse lápis enquanto escrevo
não sou eu nem os meus dedos
são as contingências

*

desertos

líria porto

o que será dos meus netos
a herança que lhes deixo
um planeta virulento
repleto de lixo atômico
de florestas dizimadas
de leitos e rios
secos

*

afinal

líria porto

nem tragédia nem comédia
a vida é um drama –– uma novela
mexicana

*

sexta-feira, 13 de junho de 2014

da arca de noé à torre de babel

líria porto

o grande o pequeno o absurdo o invisível o improvável
o amor o ódio o céu o inferno o ar o mar a terra o rio a floresta
o incêndio o dilúvio o barulho o silêncio
o jogo a jogada a malandragem
o feio o bonito o olhar
o orvalho a flor a raiz a poesia
quaisquer sentimentos quaisquer palavras
deus e o diabo dentro
do poema

*

quinta-feira, 12 de junho de 2014

blefe

líria porto

traçada por mão exata
exímia mão de artista
que sequer usa compasso
a lua dos namorados
pouco a pouco
esfarinha-se

*

quarta-feira, 11 de junho de 2014

encontros vocálicos

líria porto

mais que orvalho ou centelha
a ilha

(fica de molho
o marulho)

*

parentesco

líria porto

mata a sogra e pinta a boca
(a cor lhe cai muito bem)
se caim matou abel
por que não?

*

inconsciente

líria porto

influências boas
perversas
ocultas dentro da gente
e que podem vir à tona
nos sonhos
nos pesadelos

*

devaneio

líria porto

sem que eu mexa um músculo
o pensamento voa e a alma
mergulha

*

terça-feira, 10 de junho de 2014

sem contemplação

líria porto

a vida usa chibata
dá-nos golpes sucessivos
a gente aprende na marra
a pele fica lanhada
o espírito fortalecido

*

segunda-feira, 9 de junho de 2014

deterioração

líria porto

foi-se e retornou
e seu argumento
é convincente
:
no olho da rua
tem remela

*

domingo, 8 de junho de 2014

almoxarife

líria porto

caixas de todos os tamanhos
para te mandar livros coisinhas
lembranças

partiste sem combinar
vou passar o resto dos meus dias
com carinho
                 acumulado

*

plágio

líria porto

surrupiou-me a história
a que ocultei debaixo da pele
tatuada na alma com ferro
e fogo

(a carochinha)

*

blefe

líria porto

palavra de honra
honra a palavra
ou é só falácia
arroto de quem
não tem vergonha?

*

no reino dos arachás

líria porto

o sol joga purpurina
ilumina pelas beiras a cidade
dá vontade de voar qual maritaca
de bicar coco amarelo
com alarde

(no domingo muita gente acorda tarde
eu madrugo)

*

castigo

líria porto

meu coração não bate
ele apanha e não aprende
esse dis_traído
:
vou trancá-lo a sete chaves
ou deixá-lo de joelhos
sobre o milho

*

saudade

líria porto

de chorar qual bica d'água
quase desidrato a alma

*

sábado, 7 de junho de 2014

esbórnia

líria porto

vinha cedo – sempre sóbrio
agora fica até tarde
e só chega
encharcado de cachaça
ou vinho

o meu verso
bêbado

*

sexta-feira, 6 de junho de 2014

distribuição de renda e trapo

líria porto

os ricos os bonitos os cheirosos
mandem todos eles ao abrigo
:
para o banquete
                  tragam os pobres

*

quinta-feira, 5 de junho de 2014

aúuuuuuuuuuuuuuuu

líria porto

um cão uiva para o azul
muito branco muito nuvem
muito chuva em gestação

*

quarta-feira, 4 de junho de 2014

infinitamente

líria porto

a mando do amor
continuo amando

*

na zona do coração

líria porto

entrava saía
a porta entreaberta

um dia trancou-se por dentro
ficou dono absoluto do meu
sentimento

*


alimento

líria porto

se o mar não me der nada
nenhum peixe
envie-me a sereia de peitos fartos
para que eu seja consolado
na pobreza

*

cheia de beijos

líria porto

era toda boca
quando ria chorava comia
fazia muxoxos – de batom
ou sem batom

a vida concentrada
nos lábios

*

muso

líria porto

para te amar não preciso de nada
sequer necessito da tua presença
eu te invento no vento
na brisa
no ar
e te tenho e te sinto
a todo momento

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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