os tratores as motosserras
os trabalhadores
um apartamento por andar
elevador piscina sauna
cinco vagas na garagem
área de lazer academia
lojas no térreo
: e mendigos
debaixo
por ti eu faço de um tudo
rezo terço assalto banco
tricoto um manto de nuvem
como jaca abacate
(argh)
falo com o inimigo
rastejo peço desculpas
planto girassol no umbigo
tatuo a madona na bunda
pra ti eu faço de um tudo
só não te faço
comida
o vento é moleque
e faz cada uma
convulsiona as nuvens
esparrama o cisco
alvoroça as árvores
sacode a mangueira
dá chutes na porta
bagunça a cortina
e espalha a poeira
na casa
a paralisia infantil
o aparelho na perna
tuc toc tuc toc
o disco do lucho gatica
(la barca el reloj
bessame mucho
contigo en la distancia)
a paixão por helenice
a mocinha pobre
que morava na ponta da rua
e foi pra são paulo
ser puta
torci-os
pendurei-os no varal
e agora que secaram
(olhos amarrotados)
recoloquei-os na cara
e jurei para mim
nunca mais uma lágrima
qualquer ensaio de choro
nada que me deságue
meu avô grandalhão
imenso em tudo – imerso
em bondade e riso
nas lembranças do líbano
no amor aos filhos e netos
na birra pelos gringos
pelos ricos
pelo capitalismo
meu avô grandalhão
incapaz de ralhar com menino
ele próprio um menino gigante
de fora para dentro
esbarro em cada costela
perfuro o coração –– ele esguicha
faço o mesmo com o pulmão
fúuuuuuuuuuuuuuuuu
:
e eu de pé
(mais morta que viva)
quando eu ficar calada
louvem-nas
levem-nas à sua causa
espalhem-nas pelos canteiros
ruas praças e jardins
semeiem-nas
:
não deixem que as palavras
morram
só falo aquilo que penso
não sei mentir bajular
vivo enfiado em meu canto
não vou ao bar à igreja
e quando alguém se aproxima
fico encolhido –– sou tímido
eu gosto mesmo é de livro
e conto amigos
nos dedos
o livro da sua lavra
tanta beleza incontida
já me levaram às lágrimas
de tristeza de alegria
a poesia nas páginas
a magia das palavras
tudo me toca
o espírito
de areia argila ou lama
seja lá do que te chamem
no plural no singular
agora és pó e o vento
ao te soprar para dentro
dos teus poemas
dos versos
entenderá que a vida
é tudo isso
e é pouca
:
quase igual uma lagarta
que cria asas
e voa
meio aos morros desce um rio
tão igual fio de prata
pelo verde uns pontos brancos
a moverem-se sobre o pasto
mais abaixo uma casinha
uma chaminé - fumaça
e por certo outra maria
a preparar as marmitas
a socar o arroz em casca
tudo me comove
o broto na terra
a serra a neblina
o verde nos olhos
o rio a enxurrada
a gota que cai
as penas o pássaro
o ninho que encharca
o canteiro de alface
a vidraça que chora
as roupas no varal
eu queria ser a_penas passarinho
ter meu ninho numa galha dessa árvore
sem ninguém que me prendesse em gaiolas
sem ninguém que em mim pusesse maus-olhados
inquieta no meu canto
a dirimir minhas dúvidas
amansar as incertezas
eis que vem a arrogância
para impor seus pensamentos
questionar os meus limites
arruinar-me os nervos
o riso de simpatia (algo como escárnio) a praia as moças a farra os empregos de araque boas roupas carros chiques circulou tão à vontade o filhinho do papai protegido do vovô
nunca quis saber de povo das suas necessidades nos seus jatos viajava não para servir a pátria não para honrar compromissos por volúpia vaidade sem nenhum calo nas mãos sem nenhuma cicatriz
passarinha sai do ninho
passarinho canta alto
dá um salto leva um susto
ergue o busto olha ao lado
o soldado ali presente
ele - o dono da gaiola
tem a cara muito feia
atrás do balcão do armazém de secos e molhados
meu pai perguntava – quantos quilos de açúcara
embora anotasse na caderneta do freguês
com boa letra
a palavra correta
e eu me envergonhava
daquele homem de pouco estudo
que tinha um imenso orgulho
dos seus nove filhos
a origem a raiz o alicerce o que está lá no fundo fora do alcance dos olhos e contudo faz-nos fortes capazes de resistir à violência dos ventos e das intempéries
bonequinhas de pano pernas e braços roliços caras compridas cabelos de lã olhos e bocas bordados vestidinhos de flor ou bolinhas a parte mais bonita dos milagres de minha mãe
vou dançar a valsa com a minha filha
eu fui mãe e pai – um trabalho duro
mantive-a na escola foi pra faculdade
sinto muito orgulho e não admito
que alguém ausente venha para a festa
e cante de galo
ouço o que têm a dizer
procuro saber quem são
sua história a coerência
onde estão onde estiveram
com quem andam
mudam ou não de posição
pulam de galho em galho
têm caráter têm preparo?
o burguezinho de merda
que vive em cada ser
é melhor envenená-lo
deixá-lo morrer à míngua
para renascer o homem
que não aceite injustiça
que não queira só pra si
as riquezas as belezas
as coisas boas
que existam
sem um amor sem o outro
a vida murcha
urge-lhe arranjar mais um
(seja o último)
um que lhe banhe o corpo
leve-o ao sepulcro
por ele se vista de luto
jogue-lhe a última flor
herde os seus acúmulos
eu gosto da claridade
de saber por onde piso
de ver quem anda do lado
de ajudar quem precisa
de também ser ajudada
de sentir que nesta vida
podemos ir de mãos dadas
sem temer
quem tem as mãos calejadas
sabe das dificuldades
que é preparar a terra
escolher boas sementes
plantá-las regá-las
exterminar toda a praga
retirar os parasitas
esperar a chuva o sol
o tempo da colheita
deitado na rede é fácil
torcer o nariz apontar
dizer - sou o novo
o milagre
fechem os olhos
confiem
eu sou o iluminado
tua voz ao telefone as notícias as mudanças os filhos que se casaram netos e netas crescidos as recordações e meia hora depois o espaço de trinta anos reduz-se a poucas semanas e nunca houve distância : (retomamos a conversa no ponto da despedida)
um elo da corrente pode se corromper
aquele para o qual fizemos vistas grossas
deixamo-lo de lado por razões tão nossas
(complexos traumas comodismo)
que ninguém e nem nós mesmos
tomamos conhecimento
em cama de prego
não feri a pele
pisei sobre cacos
sem cortar os pés
já brinquei com faca
com arma de fogo
porém para o amor
não corro esse risco
que não tenho empenho
e me falta fôlego
para o dia a dia
tem poeta com mãos de cirurgião
tem poeta com mãos de lavrador de padeiro
de jardineiro artesão alfaiate
mágico
tem poeta com mãos de tesoura
de facão de foice
tem poeta com asas com manto
tem poeta com cetro
e coroa
quando a coisa aperta o que se suporta é fecharem as portas também as janelas bem na nossa cara pois que vacas magras não servem pra corte e secou-se o leite que havia nas tetas
fui atraída – embarquei assim mesmo é o viver passagem apenas de ida paisagens labirintos perigos túneis abismos destino desconhecido uma viagem de trem
vez por outra uma estação onde uns sobem alguns apeiam
com um arpão
acertou-me no peito
puxou-me pra perto
abriu o meu couro
bebeu o meu sangue
retalhou meu coração
e jogou-o às piranhas
(pedacinho a pedacinho)
só por vingança
com a sutileza de um paquiderme
a lanhar-me o corpo sulcar minha pele
fraquejar-me os ossos estalar chicote
demonstrar sem trégua quem conduz
as rédeas
:
o tempo
esse moleque
teu jeito me baratina me bota fora do prumo quando eu te vejo moleque eu danço polka xaxado brinco de espada de bola esqueço que fiquei velha e pulo como cabrito
incisivos permanentes
escondidos na gengiva
empurram dentes de leite
que bambeiam um a um
deixam a comissão
de frente
:
abrem alas para o sorriso
definitivo
muitos sóis muitos sistemas
planetas sem conta
a nossa alma gêmea
existe num outro plano
e para encontrá-la precisamos
libertar-nos da angústia
e da matéria
a velha alemã
(tailleur branco meias finas e mãos frias)
parteira de ricos
pegou-me pelos pés
(eu – a filha de um simples comerciante)
espalmou com força o meu traseiro
e me jogou nesse mundo
:
berrei como um bezerro
o galo nem olha
pra galinha velha
cheia de pelancas
sobe-lhe nas ancas
mete-lhe as esporas
depois faz o mesmo
com outras frangas
:
ele –– o dono da crista
o rei do terreiro
sapo pai chama o menino
vem aqui meu girininho
vou te ensinar umas coisas
logo logo terás pernas
mas perderás o teu rabo
co'as pernas virão os pulos
não podemos é ter tudo
e rabo algum fará falta
para aliviar a vida dar-lhe algum alento só tenho comigo lápis e papel porém não consigo meu verso é pequeno não toca profundo as dores as feridas que maltratam as lendas