quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

o projeto

líria porto

os tratores as motosserras
os trabalhadores
um apartamento por andar
elevador piscina sauna
cinco vagas na garagem
área de lazer academia
lojas no térreo
:
e mendigos
debaixo 
da marquise

*

in_direta

líria porto

uma farpa uma felpa um alfinete
com a forte intenção de nos futricar
sem dar na vista

*

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

queda de braço

líria porto

na palma da mão um triângulo
sobre o triângulo uma ilha
onde se esconde um demônio
que se diz forte
invencível

ou dou o braço a torcer
ou ele acaba comigo

*

homeopático

líria porto

vou te abraçar te beijar
despedir-me um pouquinho todo dia
enquanto há tempo

*

domingo, 28 de dezembro de 2014

cinturão

líria porto

o corpo pesa igual chumbo
eu quero um canto uma cama
e o mundo acabe
                          num susto

(a vida é bruta)

*

hematoma

líria porto

o corpo sara
a alma continua
ultrajada

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) frígida

líria porto

fiel à humanidade
deitava-se com uns e outras
e não era traição

(escondia
o inverno
no interno
das coxas)

*

sábado, 27 de dezembro de 2014

colaboração

líria porto

comadre galinha d'angola
tem os seus próprios filhotes
mas deita no ninho e choca
os ovos da dona gansa

*

envolvimentos

líria porto

tem quem durma com estranhos
sempre pensei outra coisa
quem conhece a nossa alma
pode bem dormir
                              conosco

*

quase

líria porto

noites seguidas
tu em meus sonhos
e se pudesse
não acordava
nunca mais

*

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

mormaço

líria porto

ah – a borboleta
vou fazer com suas asas
um leque de abano

*

aurora

líria porto

galo céu sol azul
flor passarada criança
tudo acorda e canta

*

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

a decoração

líria porto

violenta o morador
mas impressiona
a visita

*

decoração

líria porto

a classe média
traveste-se de rica

pitacos estéticos
camuflam mentiras

um vasinho aqui
um cristal ali

(ouro de tolo)

*

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

a_penas

líria porto

não corro atrás nem à frente
se a vida quiser que eu tenha
embale para presente

descasco o abacaxi

*

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

sete vidas

líria porto

eu sempre passo na prova
embora saiba – hora dessas
a morte ganha

*

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

aspectos

líria porto

as coisas são
como estão?

o cão vê o gato
bem diferente do rato
(questão de defesa e ataque)

aurora e crepúsculo
são dia noite ou mestiços?
(depende do ponto de vista)

o sol é para todos
e a chuva?

*

domingo, 21 de dezembro de 2014

material

líria porto

anjo coruja urubu ou galinha
preciso de uma pena  tinta não
que rasgo o pulso

*

sábado, 20 de dezembro de 2014

relembranças

líria porto

melado com farinha
queijo cará ou mandioca
de lamber os beiços
de voltar a ser
menino

(a vida igual rapadura
doce e dura)

*

sem asas

líria porto

subo escadas com esforço
e – sem fôlego – necessito
boca a boca

*

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

argumentos

argumentos

a chuva chove
vem cá moreno
amarra a mula no poste
comprei cerveja
torresmo farofa
:
se a patroa reclamar
inventa um pretexto
um barro na estrada
um medo de raio
trovão tempestade
mas vem
aqui é melhor
do que lá

*

entonação

líria porto

a voz dos avós
é capaz de amansar
o choro

*

desagravo

líria porto

a mágoa infiltra-se na alma
e mofa os sentimentos

melhor deixar ao relento
o que pareça ofensa

*

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

(para o livro sem pecado não tem salvação) diligência

líria porto

por ti eu faço de um tudo
rezo terço assalto banco
tricoto um manto de nuvem
como jaca abacate
(argh)
falo com o inimigo
rastejo peço desculpas
planto girassol no umbigo
tatuo a madona na bunda
pra ti eu faço de um tudo
só não te faço
comida

*

enfim

líria porto

por um átimo era ótimo
mas preferia ser o último
o íntimo

*

os cunhados do seu joaquim

os cunhados do seu joaquim

o neném da ênia
que homem bonito
que cara perfeita
cantava bem
(um verdadeiro caruso)
nem parecia
pai de família
(não usava aliança)

seu irmão caçula
a barba cerrada
a mesma voz
o mesmo gosto pelas mulheres
ninguém queria
era baixinho
as pernas tortas
(o alicate)

(e nós meninas
de cá do muro)

*

dolores

líria porto

dor aqui dor ali
dor acolá
:
hoje me doem
as asas

*

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

traçado

líria porto

o córrego faz suas curvas
passa rente ao casario
desce por entre as pedras
pega carona no rio
pra depois seguir destino

o mar é cheio de córregos
de águas domésticas

*

carrancas

líria porto

cara dum focinho do outro
agora chegou mais um
pai filho neto – a cópia
xerox

*

a presença

líria porto

a dor na barriga me avisa
tens barriga

talvez para isso me sirva a dor
quando eu me moer toda

*

maria da penha

líria porto

palavra puxa palavra
e de repente o silêncio
depois um grito
uma ofensa
um tapa
uma facada

(era pra ser para sempre)

*

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

muralha

líria porto

maria maria
um nome de tanto peso
para criança franzina

na segunda potência
maria maria é mais forte
que a maioria

*

chuvarada

líria porto

deixar o céu chorar nos nossos ombros
misturar as suas lágrimas às nossas lágrimas
consolar-nos e ao todo poderoso
de toda nossa falha
humanidade

*

não faço planos

líria porto

passo o ano
como quem lê um livro
365 páginas –– capa dura
um dia por dia

*

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

o mergulho

líria porto

bati a cabeça no fundo
ouvi o estalo

as pedras continuam íntegras
o estrago foi em mim

penso uns coágulos
e ouço vozes

*

mestre

líria porto

aprender até que é fácil
difícil é quem ensina
quem o faça com critério
com respeito ao aprendiz

*

enfim sólidos

líria porto

um amigo tudo pode
(até frequentar nossa cama)
as amizades resistem

essa história de romance
oscilante possessiva
rói-nos dentro
e fora

*

domingo, 14 de dezembro de 2014

frustrações

líria porto

acalmar o vento
enxugar a chuva
conter redemunhos
educar-nos

tanto trabalho inútil

(continuamos os mesmos
a mesma gente sem nenhum traquejo
e sem escrúpulo)

*

amore

líria porto

só o sonho vence o tempo
vence a morte
e foi tudo tão real tão verdadeiro
que o teu cheiro continua
nos lençóis

*

postal

líria porto

perdemos o hábito de esperar o carteiro
e para te surpreender escrevo-te –– aqui tudo nos conformes
menos a saudade que extrapola

vem quando puderes
voo assim que der
:
até breve

*

sábado, 13 de dezembro de 2014

antiguidade

líria porto

a pele do mar não é lisa
tão velho é o mar
e tão belo

a velhice não carece máscara

*

irremediável

líria porto

viemos
temos que voltar – e essa peleja
pra adiar a hora

(a morte é pontual)

*

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

o carregador

líria porto

descarregar o caminhão
carregar o carrinho
puxar o peso
retirar do carrinho
empilhar as caixas
tantas vezes
quantas necessárias
desde a madrugada

(à noite
salmoura nos ombros
nos calos)

*

na mira

líria porto

na corda bamba
no fio da navalha
na ponta do punhal
na beira do abismo
no alvo
:
jamais em cima do muro
ou ao lado dos golpistas

*

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

poderosa

líria porto

às vésperas do sorriso
de repente a gargalhada
aquela risada de bruxa
a espalhar-se nas curvas
nas derrapagens
da audácia

*

oferecida

líria porto

dois palmos de saia
blusa de oncinha
as botas de salto
sem roupa de baixo
e sem agasalho
à espera de quem
nem sabia

(com beijo na boca
é o dobro)

*

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

labuta

líria porto

à pé
de pé
bicicleta
ônibus
trem
metrô
:
fábrica
casa de família
portaria
loja
supermercado
construção
:
salário?
o mínimo
do mínimo

*

abandono

líria porto

a menina
(desprotegida)
faz a viagem
sozinha

putaquepariu
onde o (ir)responsável?

*

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

o roqueiro

líria porto

requeiro o que quero
um rock pauleira
um som tão pesado
que me leve
(love me)
às alturas

*

vidinha

líria porto

à manhã abre a janela
à noite fecha a cortina
à tarde fica na dela

(faz a sesta
vê um filme)

*

sem modos

líria porto

o vento é moleque
e faz cada uma
convulsiona as nuvens
esparrama o cisco
alvoroça as árvores
sacode a mangueira
dá chutes na porta
bagunça a cortina
e espalha a poeira
na casa

(vovó fica fula)

*

ao deus dará

líria porto

o corpo na cama
e a alma no mundo
dos sonhos

dormir é olhar
para dentro

*

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

nua

líria porto

dançava na rua
rodopiava
e era tão bonito
e era tão poético
mais que uma flor
ou um pássaro
:
atentado ao pudor
senhor guarda?

*

lembrança

líria porto

quando parti
cochichou em meu ouvido
não me olvides


ainda sonho com ele

*

definição

líria porto

metáfora
é quando a palavra
não está ao pé
da letra

*

domingo, 7 de dezembro de 2014

historia de un amor

líria porto

a paralisia infantil
o aparelho na perna
tuc toc tuc toc
o disco do lucho gatica
(la barca el reloj
bessame mucho
contigo en la distancia)
a paixão por helenice
a mocinha pobre
que morava na ponta da rua
e foi pra são paulo
ser puta

*

sábado, 6 de dezembro de 2014

o elevador

líria porto

nesse sobe e desce
e se pararmos no meio do andar
se nos faltar energia?

*

o fotógrafo

líria porto

congela o fogo
as labaredas já não lambem
a quentura não me queima
nem aquece água do banho

*

pois é

líria porto

fosse fada
tivesse varinha de condão
dava um jeito na pia
varria a casa
arrumava a cama

acontece que não

*

escambo

líria porto

o hábito de freira
um par de lágrimas retidas
o banco de espera
o baú de desmemórias
por algo ou alguém
sem cobiça

*

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

amnésia

líria porto

quando te acho eu me perco
não sei mais nada de mim
então me levas me trazes
e muitas horas mais tarde
é que recordo meu nome
volto a ter identidade

*

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

embaraço

líria porto

ameaço puxar
o fio da meada

em meados do mês
o salário acaba
faço uns bicos
:
o suficiente
para a cachaça

*

pau-de-sebo

líria porto

o oblíquo da rampa 
abranda a subida
a descida

escaladas verticais encurtam caminho
demandam esforços sobre-humanos e a queda
pode ser fatal

(não há que se pisar em companheiros)

*

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

trivial

líria porto

o meu bife preferido
não é de filé mignon
eu amo bife de fígado
cortado um pouco mais fino
acebolado e no ponto

e se houver arroz branco
um tantinho de jiló
um golinho de cachaça
isso sim é o paraíso
a cozinha lá de casa

(é só comer
e domir)

*

a defunta

líria porto

banhei felícia
vi-a de corpo inteiro
tufos de espuma do mar
nos cabelos
nos pentelhos

perfumei-a
enrolei-a em lençol branco
coloquei-a no caixão
outros fizeram o enterro

(fechou-se o chão para sempre
e ninguém chorou)

*

clones

líria porto

espelhos olham-se fixos
das paredes paralelas
refletem-se e se desdobram

passo entre eles e me vejo
duas dez trezentas vezes
qual das velhas sou eu
:
todas elas?

*

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

náusea

líria porto

fruta da minha estação
ando enjoada de mim
todo dia a mesma líria
todo dia a mesma líria
só que agora dói

*

desidratação

líria porto

torci-os
pendurei-os no varal
e agora que secaram
(olhos amarrotados)
recoloquei-os na cara
e jurei para mim
nunca mais uma lágrima
qualquer ensaio de choro
nada que me deságue

*

domingo, 30 de novembro de 2014

árabe

líria porto

meu avô grandalhão
imenso em tudo – imerso
em bondade e riso
nas lembranças do líbano
no amor aos filhos e netos
na birra pelos gringos
pelos ricos
pelo capitalismo

meu avô grandalhão
incapaz de ralhar com menino
ele próprio um menino gigante

*

noturno

líria porto

pôr dormir o sol
arredar a nuvem
e com pau de fósforo
acender a lua
e as estrelinhas

*

sábado, 29 de novembro de 2014

penhasco

líria porto

eu te abismo
tu me abismas
e a queda
é livre

*

lindo céu de beagá

líria porto

não vou morrer por aí talvez morra em araxá
enterrem-me em araguari  foi de lá que eu saí
é tempo de retornar

parto com a ventania

*


cainçalha

líria porto

cachorros cadelas
os vira-latas sem nome
que habitam as ruas

*

seja como flor

líria porto

em tempos chuvosos
replantar-se numa cova
irromper do chão

*

ermos

líria porto

nesse banho de amar que é a vida
só molhamos as solas dos pés
e sentimos o mar refluir
baixar-nos a maré

(pegadas na praia)

*

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

tim-tim por tim tim

líria porto

viver assim
entre vírgulas
aposto que é o aposto
o gosto por explicar-se
tão diferente de mim

*

prego

líria porto

o padre pregava
e as batidas
e as beatas
a metralhadora das bocas

(na janta
picadinho com molho
no campo
galo e raposa)

*

bronco

líria porto

trocou cago por defeco mijo por urino
e não avançou nenhum passo
rumo à humanização

(coisas de doutor)

*

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

passagem

líria porto

ouvia o vento ventar
zunia
levava em sua corcova
a nuvem cheia de chuva
sua bagagem de lágrima
maria

*

pedaços

líria porto

desabo
despenco sobre os degraus
e alquebrado
curvado sobre os escombros
recolho uns cacos de mim
os mais frágeis
para montar um mosaico

*

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

desmorrer

líria porto

brinco com tirana
tiro sarro
troco suas penas de gralha
pelas vestes da andorinha
:
ela encolhe de tamanho

*

autoconhecimento

líria porto

de fora para dentro
esbarro em cada costela
perfuro o coração –– ele esguicha
faço o mesmo com o pulmão
fúuuuuuuuuuuuuuuuu
:
e eu de pé
(mais morta que viva)

*

munição

líria porto

o que te falta –– coragem
o resto tu tens de sobra
motivo necessidade

(mas também te falta
pólvora)

*

porto

líria porto

a saüdade tem trema
como as lüas tatuadas
as sardas
:
o arrepio

*

juízo final

líria porto

quis que a vida te matasse
a morte não –– esta corriqueira
mata tudo e todos

quis que a morte te ressuscitasse
ela não faz isso –– não te dá a mim
de mão beijada

*

intensidade

líria porto

a dor que te dói
o fogo que te queima
a solidão que te faz uma ilha
na multidão

(rodar sobre a sola dos pés
tomar o caminho de volta
retroceder)

tudo mata
a tristeza
a alegria

*

terça-feira, 25 de novembro de 2014

bafejo

líria porto

a vida é uma libélula –– um sopro
a aragem que mantém o corpo
de pé

*

as palavras

líria porto

quando eu ficar calada
louvem-nas
levem-nas à sua causa
espalhem-nas pelos canteiros
ruas praças e jardins
semeiem-nas
:
não deixem que as palavras
morram

*

absolutos

líria porto

encontros vocálicos
proparoxítonas polissílabas
prefixos sufixos tônicas
hiatos
:
eu tenho uma tara
até mesmo pelos vícios
de linguagem

*

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

impopular

líria porto

só falo aquilo que penso
não sei mentir bajular
vivo enfiado em meu canto
não vou ao bar à igreja
e quando alguém se aproxima
fico encolhido –– sou tímido
eu gosto mesmo é de livro
e conto amigos
nos dedos

*

cifrões

líria porto

séculos de floresta e as madeireiras
seus dentes de tubarão e gula
de motosserra

*

o menino

líria porto

sono pesado
ou sono leve

às vezes pedra
às vezes pena

alterno noites
de paquiderme

com belos sonhos
de borboleta

*

domingo, 23 de novembro de 2014

dúbia

líria porto

do bem do mal
de tudo de todos
treva ou farol
leva-nos aos píncaros
atira-nos no abismo
sem dó e sem choro
porém joga flores
depois pá
                de cal

(a vida  essa doida
morde e sopra)

*

condenada

líria porto

de braços com a morte
jamais se vestiu de preto

a vida ia cor-de-rosa
apesar do câncer

(vivia além do tempo)

*

equilibrista

líria porto

a mil metros do chão
a sombrinha de frevo
ou a vara comprida
que nos facilite
caminhar pelos dias
sem nenhuma certeza
de que haja uma rede
de proteção

*

pesadelo

líria porto

um sobressalto
as pernas trêmulas
coração disparado
a boca seca

(os sonhos são calmos)

*

sábado, 22 de novembro de 2014

vendilhões

líria porto

lucro lucro
lucro
adeus azul adeus verde
adeus água oxigênio
roubaram tudo da terra
e vão assaltar
mercúrio

(adeus vermelho)

*

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

tão moço

líria porto

recusou-se a envelhecer
a cumprir tal o traçado

qual um rio intermitente
interrompe a correnteza

desiste de desaguar

*

envelheço

líria porto

amarroto o corpo
ao passar do tempo

*

o pessimista

líria porto

o deserto caiu em seu olho
a areia o impede de ver o oásis
e até mesmo o camelo
e o beduíno

*

indagação

líria porto

a morte aguda a vida crônica
e eu nessa dúvida

*

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

bicão

líria porto

no teto
um olho
na parede
o ouvido
no chão
a formiga
e não nos livramos
nem do enxerido
nem do fantasma

*

aviãozinho

líria porto

curvas no ar
os desvios
em minha rota
essas nuvens
:
temo ferir
anjos tortos
ou deuses
perdidos
no azul

*

baixas

líria porto

morri e não disse a ninguém
nem vou dizer
o silêncio é a fala mais óbvia
se alguém perceber que sumi
eu me torno o defunto do dia
o assunto da hora

*

regras

líria porto

o rio passou dos limites
depois retomou o traçado
amarrado à corrente

*

desmilagre

líria porto

do pão que a diaba amassou
comi somente uma lasca
o resto dei pras santinhas
e elas viraram
                  a casaca

*

o escritor

líria porto

o livro da sua lavra
tanta beleza incontida
já me levaram às lágrimas
de tristeza de alegria
a poesia nas páginas
a magia das palavras
tudo me toca
o espírito

*

terça-feira, 18 de novembro de 2014

à festa

líria porto

ruge à sombra do batom
uma pintura

(e a minha cara lavada)

*

acidentes de trabalho

líria porto

quem confere o ferro
com ferro será ferida

*

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

o ladrão

líria porto

ninguém me roube
o que não tenho
não por engenho
por pura falta

(o tempo ruge)

*

malandro

líria porto

atrás da cadela o cachorro
a focinhar-lhe os fundos
a mordiscar o seu lombbo
oferecer-lhe o osso duro

*

bailinho

líria porto

avós bisavós
quase todas centenárias
floresta de nuvens

*

ai ai

líria porto

amor é suspiro
açúcar batido
com nuvem

*

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

de barros

líria porto

de areia argila ou lama
seja lá do que te chamem
no plural no singular
agora és pó e o vento
ao te soprar para dentro
dos teus poemas
dos versos
entenderá que a vida
é tudo isso
e é pouca
:
quase igual uma lagarta
que cria asas
e voa

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) da comida

líria porto

adão e eva –– inocentes
aceitaram da serpente
a maçã que era de deus

(e assim nasceu caim)

que fome filha da puta
gostaram tanto da fruta
mais saborosa que mel

(e assim nasceu abel)

*

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

momentâneo

líria porto

chove chove
o fogo apaga lá fora
e ao respirar da fumaça
ao escrever com carvão
não sinto abafo ou sufoco
e nem saudades do sol

*

folia

líria porto

eu frevo tu ferves
o fogo pega

*

maria fumaça

líria porto

ao nascer embarcamos num trem
cada qual com trilhos exclusivos
onde fomos tão só passageiros
aprendemos a ser maquinistas
:
piuíiiiiiiiiiiiiiii

*

folga

líria porto

deitava-se no sofá
cabeça nas minhas coxas
roncava alto
e assim passava a noite

pela manhã
eu ia para o trabalho
jogava-se na minha cama
dormia até meio-dia

(tanto
amor

raiva)

*

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

irmãos

líria porto

este mundão de teu deus
esta coisinha de nada

em cada esquina
uma estrela

e o mundo dentro de casa

*

curativo

líria porto

o que os netos implantam de ternura
num pobre coração puído e exausto
suplanta qualquer dor qualquer recalque
que a agrura do viver imponha
                                               aos velhos

*

tanto

líria porto

belas
e
efêmeras
como
bolhas
de
sabão
:
as
paixões

*

ilícito

líria porto

podemos tudo mas não devemos
porém teus olhos me olham fixos
eu não resisto e arrombo
a cerca

*

domingo, 9 de novembro de 2014

fervura

líria porto

a lua dentro do lago
como um alka-seltzer

*

cantochão

líria porto

enquanto durar o fôlego
um verso  depois  ah depois
a pá de cal

*

panorama

líria porto

meio aos morros desce um rio
tão igual fio de prata
pelo verde uns pontos brancos
a moverem-se sobre o pasto
mais abaixo uma casinha
uma chaminé - fumaça
e por certo outra maria
a preparar as marmitas
a socar o arroz em casca

*

quantas horas?

líria porto

mais de oito mais de nove
tenho o sono desse mundo ancorado
em minhas costas

*

. mecânico

líria porto

falo duro
sem romance
sem trilha sonora

(penetro
bato estaca
viro para o canto
e durmo)

*

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

derradeiro

líria porto

não haverá verso
só um ponto final e uma pá
de terra

um silêncio a sete palmos

*

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

agulha

líria porto

teu olhar
fino agudo
a furar-me o olho
a apagar a luz
que me ilumina

*

último ato

líria porto

o corpo do pássaro
voo e canto interrompidos
morte na varanda

*

haicai

líria porto

no teto da casa
um globo com luz acesa
a lua no céu

*

terça-feira, 4 de novembro de 2014

varal

líria porto

penduraram a infância
lado a lado co'a velhice
no espaço desse palmo
cabia uma saia justa

(vivemos só o resumo
daquilo que gostaríamos)

*

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

cisco

líria porto

no corpo da humanidade
cada qual é uma célula
removível renovável
:
então pra quê
                tanta empáfia?

*

petrechos

líria porto

mais velha que a vida
a presença da vassoura
é tão somente
um detalhe

(o corvo pousa em meu ombro)

o caldeirão é herança
deixou-mo a minha avó
presidente da irmandade
das mulheres poderosas

*

arena

líria porto

ver ou não ver
(ah coração)
melhor fingir
cerrar os olhos
pois que espiar
(nos dois sentidos)
causa tragédias
(dor de_ferida)

adeus a todos
que nos tornamos
só personagens
desta vingança
(vindita)

*

domingo, 2 de novembro de 2014

o banquete

líria porto

mesa posta – tantos livros na bandeja
a palavra como entrada e os poemas
como prato principal

*

homelet

líria porto

voei e volto pro ovo
o bico silencioso
as asas dentro da casca

eu tenho pena de mim
um promissor passarim
um candidato a gemada

*

notícias

líria porto

passarim firmou as pernas
o bico tal como novo
voa bem e sem sequelas
então –– amigos –– sosseguem
está pronto para outra

*

sábado, 1 de novembro de 2014

quilates

líria porto

na bateia
o cascalho
das palavras

a que brilha
pedra rara
é poesia

*

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

no pulo

líria porto

meu amor não sai da toca
e quando sai é de touca
meu amor tão obscuro
a esconder-se no escuro
pra não ser pego com outra

(e a outra sou eu)

*

rango

líria porto

meia-noite carruagem vira abóbora
meio-dia abóbora vira comida
(com carne seca)

*

pauliceia

líria porto

pratos empilhados na pia
no aguardo de água

mágoa espalhada no peito
a guardar rancor

*

superior

líria porto

pode ser muita coisa
até mesmo um pretexto
para ocultar a máscara
debaixo da pele
                        do rosto

*

neblina

líria porto

a cortina esconde a paisagem
mas não cala a inconfidência

*

retrocesso

líria porto

perdeu as asas
virou lagarta de novo
tal como o homem
é gorila

*

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

cerrado

líria porto

romper as nuvens
desprendê-las
e acaso poça
chorar as mágoas
até verdecer
:
ando farto de ser forte

*

das palavras

líria porto

abismos e penhascos precipitam-me
rio do lago e do mar

*

vitória

líria porto

dei de ter ideias doces
de pensar coisas tão belas
dei de olhar dentro dos olhos
da gente sincera

*

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

equilíbrio

líria porto

precisasse me mudar
fosse pra perto pra longe
levava junto meu anjo
e meus demônios

*

água parada

líria porto

doem-lhe a cabeça
tronco braços
pernas
até pensamentos
sofrem com o aedes
mosquitinho à toa
que derruba todos
e tem quase a força
de um paquiderme

*

terça-feira, 28 de outubro de 2014

a quem de direita

líria porto

no fragor da peleja
eu nem falava teu nome
agora posso - mas diacho
sinceramente eu te acho
o ó do borogodó

(gastar saliva não)

*

gravidez

líria porto

fato é que o feto
firma-se e forma-se
full time

depois pula fora
e a escola
é a vida

*

arauto

líria porto

no peitoril da janela
um passarinho maluco
fez o maior escarcéu

até parece que o cuco
quis acordar todo mundo
para contar que choveu

*

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

intervalo

líria porto

ontem em cama de faquir
hoje pude dormir nas nuvens
um descanso temporário
pois é tempo de agir
defender a nossa casa
da gula dos abutres

*

domingo, 26 de outubro de 2014

chove

líria porto

tudo me comove
o broto na terra
a serra a neblina
o verde nos olhos
o rio a enxurrada
a gota que cai
as penas o pássaro
o ninho que encharca
o canteiro de alface
a vidraça que chora
as roupas no varal

*

ideologias

líria porto

coração tem lado e pulsa
(sangue)
fígado também tem lado
(bílis)

rins são duplos
se bem que tenho só um
(o esquerdo)

estômago fica no centro
estômago e sexo
conforme a espécie
de fome

intestinos ocupam espaços
(não são neutros)
alguns sobem à cabeça
demonstram o que têm dentro
arrotam e soltam puns
(ar rarefeito)

*

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

linhagem

líria porto

eu queria ser a_penas passarinho
ter meu ninho numa galha dessa árvore
sem ninguém que me prendesse em gaiolas
sem ninguém que em mim pusesse maus-olhados

*

nas alturas

líria porto

cuida de ti
por mim
por nós dois

como tu
eu só tenho
uma asa

o voo
requer
cúmplices

*

menino

líria porto

não te assustes
os abutres se distanciam
a onda agora
tem o tom d'aurora

(mas não feches os olhos
vigia)

*

definição


líria porto

montanha é o pó que se acumula
em milhões de anos

*

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

atiradeira

líria porto

poesia é pluma
pó pétala pena
espuma

a palavra
pesa

*

merde

líria porto

o amor me lambe morde bebe come
depois me defenestra da forma
mais funesta

*

domingo, 19 de outubro de 2014

bota-fora

líria porto

inquieta no meu canto
a dirimir minhas dúvidas
amansar as incertezas
eis que vem a arrogância
para impor seus pensamentos
questionar os meus limites
arruinar-me os nervos

tratei-a como devia –– um certeiro
pé na bunda

(quem sabe de mim
nem eu)

*

sábado, 18 de outubro de 2014

das aberrações

líria porto

quis ser freira agora é crente
tudo bem – que dá na mesma
mas estrela virar tucano
é lagarta transformar-se em morcego
não em borboleta

*

das torneiras

líria porto

o céu chore - eu o consolo
nem tudo é azul no momento
alguma nuvem despenque
o chão reverdeça
haja comida nas mesas
e a água não seja
um filete

sentimos sede

*

mormaço

líria porto

preciso amansar o sol
incêndio em volta do corpo
deserto dentro da alma

*

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

couro grosso

líria porto

a nossa carne velha
imprópria para consumo
resista à pressão da plateia
à sanha e ao ódio das aves
de rapina

*

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

papéis

líria porto

o vento derruba tudo
e não fica verso 
sobre verso

*

poema

líria porto

da cartola
do poeta
as palavras
uma a uma
como flores
que completam
o buquê

*

terça-feira, 14 de outubro de 2014

o almofadinha

líria porto

o riso de simpatia
(algo como escárnio)
a praia as moças a farra
os empregos de araque
boas roupas carros chiques
circulou tão à vontade
o filhinho do papai
protegido do vovô

nunca quis saber de povo
das suas necessidades
nos seus jatos viajava
não para servir a pátria
não para honrar compromissos
por volúpia vaidade
sem nenhum calo nas mãos
sem nenhuma cicatriz

(para gente assim
tudo é lucro)

*

ameaça

líria porto

passarinha sai do ninho
passarinho canta alto
dá um salto leva um susto
ergue o busto olha ao lado
o soldado ali presente
ele - o dono da gaiola
tem a cara muito feia

*

perversidade

líria porto

atrás do balcão do armazém de secos e molhados
meu pai perguntava – quantos quilos de açúcara
embora anotasse na caderneta do freguês
com boa letra
a palavra correta

e eu me envergonhava
daquele homem de pouco estudo
que tinha um imenso orgulho
dos seus nove filhos

*

in_diferença

líria porto

as burras cheias não ligam
ficam bem
porém os pratos vazios
os pés descalços
passam fome
passam frio

*

conta-gotas

líria porto

no rio
as pedras

a seca
perdura

secura
na terra

e a cura
é a chuva

quero água

*

domingo, 12 de outubro de 2014

turismo

líria porto

a fala do estrangeiro
entrava-lhe pelos olvidos

o falo desconhecido
a penetrar-lhe entre as pernas

(pagava-a com dólar)

*

sábado, 11 de outubro de 2014

clareza

líria porto

eu não vou ficar inerte
eu não vou cair no conto
eu não vou votar no moço
ambiciono as estrelas
e serei fiel a elas
e ao povo brasileiro

dilma 13

*

sustos

líria porto

a vida é surpreendente
de repente tudo desacontece
e vamos no vácuo

só que o vento vira

*

abafamento

líria porto

a rua me engole
mas não me digere

a rua me engole
mas não me vomita

a rua me engole
e assim entalada

a rua me oprime

*

de minas

líria porto

de ferro e neblina
a ferrugem rói a gente
não temos sangue de inseto

*

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

de boca

líria porto

jiló e pimenta se amavam
ele amargo ela ardida
juntaram os seus sabores
e foram muito felizes

(em minha língua)

*

meu caro

líria porto

não quero
que te tornes
tão querido
a curto prazo

tenho
o coração
muito ocupado
:
fujo
das paixões
e das lamúrias

*

rigidez

líria porto

a morte é dura
a morte não tem
jogo de cintura

*

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

ladrão

líria porto

meu coração bate louco
parece arrombar meu peito
querer roubar-me
do corpo

*

terça-feira, 7 de outubro de 2014

firmeza

líria porto

a origem a raiz
o alicerce
o que está lá no fundo
fora do alcance dos olhos
e contudo
faz-nos fortes
capazes de resistir
à violência dos ventos
e das intempéries

*

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

magrelas

líria porto

bonequinhas de pano
pernas e braços roliços
caras compridas cabelos de lã
olhos e bocas bordados
vestidinhos de flor ou bolinhas
a parte mais bonita
dos milagres de minha mãe

*

de raiz

líria porto

cascalho
pedra bruta
areia rocha
cimento
ferro
qualquer coisa
que sirva
de alicerce

*

vô manuel

líria porto

de dentro da fotografia
seus olhos seguiam-nos
azuis e tristonhos como o mar
português

*

domingo, 5 de outubro de 2014

continuidade

líria porto

afora o que aconteça lá fora
cá dentro do peito a certeza
do dever comprido

*

andorinhas

líria porto

garantir ao bando
as pequenas conquistas
:
impedir que aves de rapina
devorem o azul e o verde

*

sábado, 4 de outubro de 2014

cotas

líria porto

preta de ébano
bela menina
brilhava mais
que a luz acesa

embora pobre
queria e teve
vontade e chance
de ir à escola

na faculdade
virou doutora
cuidou da gente
que tinha dor

(ela se impôs
e os colegas
a respeitaram
gostaram dela
:
até branca
de neve)

*

leque

líria porto

uma asa apenas
um olé me abana

ele inventa o vento
um voo à espanha

*

fuá

líria porto

o galo desperta
faz muita questão
de fazer barulho
pr'acordar o sol

ele enche o peito
canta alto e agudo
o sol e as estrelas
levam o maior susto

eu cubro a cabeça
finjo que não ouço
fico bem quieta
durmo mais um pouco

(quero ver quem manda)

*

bonito

líria porto

a lua minguante
estampada no horizonte
a cuia do coco

*

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

ponto

líria porto

ando devagar
porque já tive expresso
e cheguei à conclusão

*

boquirroto

líria porto

esbraveja denuncia
fala o que quer
o que pensa
:
arcará
co'as consequências?

*

seca

líria porto

um ser sem ceca
que se assume sem selo
e sem carimbo

*

bola de cristal

líria porto

o que está porvir
chega no domingo

*

ex_quilo

líria porto

pula daqui pra lá
corre na esteira na avenida
emagrece a óleos vistos

*

escala

líria porto

coração dói – literalmente
e coração não mente
padece e desce
do trem

*

khalo-me

líria porto

nada de bate-boca
eu quero é beijo
de língua

*

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

negligência

líria porto

o silêncio ruidoso dos omissos
dos que fingem que não veem e presenciam
dos que cerram olhos lábios
consciência

(quem ama
                           vigia)

*

para amansar a cisma

líria porto

a vovó já foi bebê
fez cocô / xixi nas fraldas

a vovó já foi menina
brincou brigou mostrou língua

a vovó já foi mocinha
atrevida malcriada

a vovó já foi bonita
usou batom salto alto

a vovó apaixonou-se
falou verdade mentira

a vovó já teve raiva
cuspiu marimbondo espinho

a vovó já ficou grávida
teve quatro bebezinhos

a vovó já riu chorou
namorou casou fez farra

a vovó ficou velhinha
tem vocês sua mãe suas tias

a vovó é todo mundo
e quando a vovó morrer

tudo vai continuar
não se preocupem

*




apoio

líria porto

acaso eu precise escorar o mau tempo
tenho a bengala de meu pai

*

dilúvio

líria porto

para abrandar os incêndios
refrescar retas e curvas
dúvidas e certezas

*

saliva

líria porto

um rio que me enxurrasse
que se infiltrasse pelas minhas frinchas
que me umedecesse corpo alma
                                           e língua

*

onde amarei meu burro

líria porto

maricota troca os dentes
os incisivos frontais
os tais que enfeitam
e abrem as porteiras
para os demais

maria é linda de todo modo
até quando faz muxoxo
e eu não concordo

*

flor

líria porto

desabrocha
reabre o sorriso
e me diz corajosa

coragem é rir
num dia desses
de calor intenso
e almas áridas

*

terça-feira, 30 de setembro de 2014

bererês

líria porto

carros adaptados
vidraças nas laterais
branco para anjos e virgens
preto para adultos velhos
e viúvas

(marieta não perdia um enterro
mas depois perdia o sono)

*

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

peso pesado

líria porto

o coração acelerou derrapou na curva
a vista ficou turva e quase bato
as botas

vou precisar mudar de rota

*

passeio

líria porto

dona pata sai do ninho
a ninhada corre atrás
no caminho tem um lago
a família foi nadar

dona pata pula n'água
os patinhos um a um
como fossem dez barquinhos
dentro d'água eles flutuam

dona pata alisa as penas
volta à casa –– que beleza
põe os filhos sob a asa
pra depois fazerem a sesta

*

domingo, 28 de setembro de 2014

menor

líria porto

apaixonei-me pelo verso alexandrino
imenso lindo – mas quando ele se foi
reduzi-me à redondilha
e fiz silêncio

*

regresso

líria porto

saio de mim quando volto
até encaixar os ossos
os músculos a sombra
ajustar os pensamentos
levo tempo

saio de ti não demoro
fico mesclada
um só corpo
passo de dança
bolero

*

santo

líria porto

ele tem um defeito – é perfeito demais
para o meu gosto

*

promessas

líria porto

com tanto mandachuva
a sede não dá trégua

a seca é ficha suja
batuca na panela

não traz feijão pra pança
nem água para a goela

*

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

piu

líria porto

um voo
e tudo fica luz

azul
que não acaba

*

o amigo

líria porto

aquele que escolhemos
que nos acolhe nos ouve
que nos há e haverá
antes durante
depois

*

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

possessivo

líria porto

tem gente que fala
minha mulher meu homem
:
há prós e contras

*

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

sete erros

líria porto

o amor
que se repete
seguidas vezes
em que a gente
sai chamuscado
e não aprende
pois que o vício
cega-nos
emburrece-nos

*

triz

líria porto

por um tris
por um xis
por um bis
por um istmo
:
ao dispor

*

cti

líria porto

espaço branco
dividido por biombos
:
um trombo aqui
ali um baço  acolá um cálculo
uma uretra

*

a pimenta

líria porto

vermelha redonda ardida
formato de coração
:
quem se arrisca

*

a rachadura

líria porto

tudo dura menos
do que gostaríamos
ou mais

jamais a medida

*

o homem

líria porto

enfiou-lhe a mão pelo umbigo
tocou em tudo que é merda
não soube achegar-se ao útero
a zona do conforto

*

reprodução

líria porto

na raiz de tudo
um macho uma fêmea
a repetirem o ato
que os trouxe ao mundo

*

do incontestável

líria porto

a vida
sei da sua duração
do beco sem saída

isso me limita
mas não me constrange

*

domingo, 21 de setembro de 2014

do sono pesado

líria porto

começa a peleja
o galo bica-o
o sol dorme

ele toca o tarol
o sol nem se mexe
e ressona

a corneta do galo
um agudo e o sol
não se apruma

o galo endoidece
faz um rebuliço
cocóricocóóóó

o sol se levanta
mas em dias nublados
perde a cancha

*

sábado, 20 de setembro de 2014

a manicure

líria porto

vou dançar a valsa com a minha filha
eu fui mãe e pai  um trabalho duro
mantive-a na escola foi pra faculdade
sinto muito orgulho e não admito
que alguém ausente venha para a festa
e cante de galo

*

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

falta

líria porto

era a minha cachaça
e eu tenho delirium
tremens

*

engarrafamento

líria porto

cabeça tronco e rodas
a esquecer-nos das pernas pés
e dos passos

*

seleção

líria porto

ouço o que têm a dizer
procuro saber quem são
sua história a coerência
onde estão onde estiveram
com quem andam
mudam ou não de posição
pulam de galho em galho
têm caráter têm preparo?

*

para nós todos

líria porto

o burguezinho de merda
que vive em cada ser
é melhor envenená-lo
deixá-lo morrer à míngua
para renascer o homem
que não aceite injustiça
que não queira só pra si
as riquezas as belezas
as coisas boas
                  que existam

*

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

melodia

líria porto

o poema que não fiz alguém há de fazê-lo
e quando eu o vir saberei – é este – estava escrito em mim
mas não o transformei em beleza

*

furada

líria porto

minha força tua farsa
sigo firme – ferves de fúria
e inveja

*

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

prorrogação

líria porto

ao despencar-me de mim
o vento não me reerga
nem me jogue além

(ninguém me ligue à maquina)

a vida não empaque
nem rasteje

*

terça-feira, 16 de setembro de 2014

remanso

líria porto

chamou-me branca
olhei-o
preto feito piche
rimo-nos
perguntou-me
sabes onde estamos
disse-lhe
no paraíso

o voo foi lindo

*

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

goya

líria porto

imagina-me
debaixo das minhas vestes
sem blusa saia calcinha
do jeito que vim
ao mundo

(maja desnuda)

quem censura uma gravura
não poda meu pensamento
tampouco toca o universo

*

lar-doce-largo

líria porto

lençóis e cobertas
guardados no armário

a louça limpinha
escorre na pia

nenhuma poeira
sujeira nem fales

porém eu confesso
rotina mais besta

que vida sem charme
a dessa doninha

*

domingo, 14 de setembro de 2014

à espreita

líria porto

ao meio-dia
quando o sol é para todos
(ninguém faz sombra a ninguém)
os covardes se escondem
:
agem é na escuridão
na calada da noite

*

sábado, 13 de setembro de 2014

ir_racional

líria porto

o bicho-homem
faz mal de propósito

(faltam-lhe princípios)

usa meio ilícito
massa de manobra

ao visar os lucros
danem-se os pobres

*

abatimento

líria porto

tanto tento no entanto
desencanto só me traz
espanto e sofrimento

para estancar o pranto
não adianta lenço

*

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

mausoléu

líria porto

a mão de ferro do tempo
dos acontecimentos
:
a resistência desaba
ouve-se um barulho surdo
o romper das estruturas
e és a tua casa

e trancas a porta
e fechas as janelas

*

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

um momento

líria porto

hora de plantar-nos
hora de encolher-nos

hora de jogar fora o relógio
de acertar sem ponteiros

*

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

o boi mocho

líria porto

podaram-lhe os chifres
mas ele soube
da traição

(depois de arrancar-lhe o couro
a vaca deu-lhe um chapéu
pra esconder-lhe 
a cicatriz)

*

plush

líria porto

hiberno
e sonho
que durmo
em caverna
juntinho
com
mamãe

onde?
na sibéria

*

seca

líria porto

choveu flor choveu flor choveu flor
e o néctar não matou a sede
da abelha

*

camuflagem

líria porto

a maquiagem
qual um reboco
disfarça estragos
estruturais

no entanto à noite
cara lavada
diante do espelho
a máscara cai

*

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

espectro

líria porto

abro os olhos não te vejo
sei contudo tu me rondas
sinto o cheiro ouço a voz
de quem nunca
foi embora

porque
nunca
veio

*

folhas secas

líria porto

o frio demora
o verde não chega

de toda certeza
somente a da sede

a da fome

*

domingo, 7 de setembro de 2014

cirurgia

líria porto

afunda emerge afunda
a agulha conduz a linha
encarregada de juntar
todas as partes
e fixar
os detalhes

(o bisturi corta a carne)

*

desbandeirado

líria porto

deitar-nos em berço esplêndido
sem ordens e sem progresso
que liberdade é pastar
capim verdinho e macio
e poder fazer a sesta

*

olhar

líria porto

a pessoa da pessoa
ri com os olhos
tal e qual um passarinho
a cantar pra nossa alma
sem solfejo pio
nada

*

economia

líria porto

ninguém tem toque de midas
nem varinha de condão

para mudar o que existe
é necessário preparo
apoio políticas públicas
pés no chão
e mãos à massa

(o mais é demagogia
blá blá blá –– papo furado)

*

sábado, 6 de setembro de 2014

na antártida

líria porto

a foca e o leão-marinho
resolveram se casar
:
a noiva toda de branco
(enfeitada com conchinhas)
o noivo – terno e gravata
(bigodes bem aparados)

pinguins foram a caráter
as tartarugas os ursos
os parentes dela e dele
(todos muito chiques)

o sol foi testemunha

*

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

duma figa

líria porto

perdi a mão para o verso
o pé não perdi –– ainda caminho
melhor que o saci

*

bobinho

líria porto

o amor  ah o amor
pula de galho em galho
qual mico tolo feliz
sem se importar com o ridículo

*

costume

líria porto

sem um amor sem o outro
a vida murcha
urge-lhe arranjar mais um
(seja o último)
um que lhe banhe o corpo
leve-o ao sepulcro
por ele se vista de luto
jogue-lhe a última flor
herde os seus acúmulos

(sempre quis
viúva rica)

*

azedume

líria porto

meu amor não sobrevive
a inseguranças e provas
:
amores imaturos
esgotam-me

dão-me nos nervos

*

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

pós-parto

líria porto

coité de leite
tigela de coalhada
a meia lua parece
peito de mulher

*

fim

líria porto

no ponto onde o tempo vira
e outro dia começa
esse suspiro

o último

*

inundação

líria porto

se as lágrimas das mulheres não secassem
não haveria planícies planaltos caatingas
só mares e oceanos  de tanta água
com sal

*

rolagem

líria porto

as semanas caminham
com passos lentos ou rápidos

lembramo-nos dos dias dos meses
da datas

não da semana passada

*

magia

líria porto

tão pequenino o ipê
tão carregado de sonhos
de responsabilidade
que levar flores ao colo
cuidar do tom da beleza
com tempo seco
é milagre

*

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

descuido

liria porto

sem atenção aos detalhes
perdemos a noção
das arapucas

tem diabo em couro de vítima

*

terça-feira, 2 de setembro de 2014

quem o viu?

líria porto

o meu versinho sumiu
não aparece faz dias
em tempo de osmarina
não me canta
a cotovia

*

porta da frente

líria porto

eu gosto da claridade
de saber por onde piso
de ver quem anda do lado
de ajudar quem precisa
de também ser ajudada
de sentir que nesta vida
podemos ir de mãos dadas
sem temer

sem canalhices

*

palanque

líria porto

não errou
quem nunca fez

quem tem as mãos calejadas
sabe das dificuldades
que é preparar a terra
escolher boas sementes
plantá-las regá-las
exterminar toda a praga
retirar os parasitas
esperar a chuva o sol
o tempo da colheita

deitado na rede é fácil
torcer o nariz apontar
dizer - sou o novo
o milagre
fechem os olhos
confiem
eu sou o iluminado

*

barbaridade

líria porto

a poesia vai bem
o sol a lua as estrelas
o céu então nem se fala
o que me aflige é terreno
há tanto inseto veneno
e a gente sendo
                      cobaia

*

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

estomacal

líria porto

amarga não nem azeda
eu sou assim agridoce
pois que rio da desgraça
do peso que me amassa
como um dia atrás
das ostras

*

domingo, 31 de agosto de 2014

decisão

líria porto

ao sentir-se muito velho
dependente das pessoas
não ter força para nada
resolveu partir
:
pior que a morte
a inércia

*

resumo

líria porto

a caneta é o bisturi
a traçar com precisão
tudo que o poeta diz
sem deixar quaisquer
senões excessos
ou exageros

*

ilhados – cercados de poesia por todos os lábios

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

mágoa

líria porto

cospe a saliva
os dentes a língua
e a boca amarga

(alivia
quando cospe
o coração)

*

papelão

líria porto

a vida a amarrotar os dias
a enviá-los à reciclagem

quem sabe mudam a aparência
tornam-se mais palatáveis

*

reencontro

líria porto

tua voz ao telefone
as notícias as mudanças
os filhos que se casaram
netos e netas crescidos
as recordações
e meia hora depois
o espaço de trinta anos
reduz-se a poucas semanas
e nunca houve distância
:
(retomamos a conversa
no ponto da despedida)

*

enxaqueca

líria porto

dor de cabeça é pretexto
é um jeito de dizer - hoje estou
de saco cheio

*

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

dor de barriga

líria porto

santinha me dá nos nervos
é boazinha demais
tem sempre uma palavrinha
uma colherzinha de chá
para o inegociável

vai um conchavinho aí?

(claro
a qualquer preço)

*

molecagem

líria porto

não imputo a outro
a culpa que é minha
nem mesmo a um puto
que tem lá as suas
mas tira o corpo fora
por covardia

*

marketing

líria porto

na casa dos assombros
o mordomo é um fantasma
à meia-noite ele fala búuuuuuuuuuuuuuu
e convoca os monstros
para arrastarem o povo
para a arapuca

(é a treva)

*

ponto fraco

líria porto

um elo da corrente pode se corromper
aquele para o qual fizemos vistas grossas
deixamo-lo de lado por razões tão nossas
(complexos traumas comodismo)
que ninguém e nem nós mesmos
tomamos conhecimento

(quem é de ferro
poderá virar ferrugem)

*

terça-feira, 26 de agosto de 2014

válvula

líria porto

por meio da escrita
a gente sopita supura
vaza o pus

evita ou retarda
a explosão

*

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

arritmia

líria porto

galopa por si só  desobedece comando
dispara (ou empaca) qual burro
por qualquer amor

arre égua
coração não tem controle

*

domingo, 24 de agosto de 2014

fogo-fátuo

líria porto

a chama que me habita
alma mente espírito
sei lá o quê
a lenha que mantém meu corpo aceso
e um dia o deixará
(frio inerte)
veio e irá para onde?

*

pretinha

líria porto

olhos de jabuticaba
pele de jabuticaba
gosto de jabuticaba
:
maria
estala
na boca

*

pluriverso

líria porto

é aqui que moro
é aqui que vivo
neste imenso
planetinha
cisco

*

tesouro

líria porto

o cão enterra o osso
e a ele recorre
sempre que pode
:
nós
as nossas
lembranças

*

rola moça

líria porto

tenho alma de alpinista
vim morar em terras planas
saudades são infinitas
onde estão minhas montanhas?

sofro a perder de vista
:
morro
morro
morro

*

sábado, 23 de agosto de 2014

golpes baixos

líria porto

para muita gente
o coisa-ruim foi um dedo-duro
ou um dedo em riste

para o machista disfunção erétil
é bem mais difícil

*

nossa

líria porto

a lua se supera
fica tão bela
tão esplendorosa
que meu verso
todo prosa
debruça-se à janela
ou senta
e se comporta

*

capação

líria porto

tem quem tenha dó de um poema
eu não - corto-lhe o pescoço a macheza
mas as asas eu preservo

*

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

setas

líria porto

se o sim é sim
se o não é não
há indicações
à terra firme

se os sins e nãos
têm sentido dúbio
então é o pântano
o chão movediço

*

tendência

líria porto

o eixo da terra mudou
os seixos rolaram
e eu me deixo
pender
:
o meu ponto
de apoio

*

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

bi_partida

líria porto

a urubua
a crocodila
a escorpiona
a lombriga
a vespa
a varejeira
a víbora
a cascavel
a viúva-negra
:
todas numa só
peçonha

*

historinha sem graça para me redimir

líria porto

eu de princesa
tu de plebeu
porém tu
muito mais nobre
que eu

olho ao redor
o que vejo
um bilhete
uma flor
um pão de queijo

na verdade
eu sem compostura
e tu
ainda pedes
desculpa

então pulo
qual sapo
e te digo
que mico
fui estúpida

estendo-te
a mão
e repito
mea culpa
mea culpa

mea culpa

*

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

sem chance

líria porto

em cama de prego
não feri a pele
pisei sobre cacos
sem cortar os pés
já brinquei com faca
com arma de fogo
porém para o amor
não corro esse risco
que não tenho empenho
e me falta fôlego
para o dia a dia

*

cumbuca

líria porto

quem quiser acredite
em lágrimas de crocodila
:
sou macaca velha
não boto voto
em arapuca

*

luto

líria porto

tem viúva de marido vivo
tem viúva de marido morto
tem viúva de marido
de outra

(quaisquer estranhamentos
são pesos na consciência)

*

terça-feira, 19 de agosto de 2014

geometrias

líria porto

I

ninguém consegue mudar
as certezas do quadrado
por mais que se vire de lado
permanece sempre o mesmo

II

vou ser artista de círculo
desenhar coisas redondas
teus olhos íris pupilas
com sapatilhas de ponta

III

eu tu ela
um triângulo equilátero
lados iguais de mãos dadas
sem nenhum ressentimento

IV

do trapézio ao picadeiro

*

ledoca

líria porto

ao que toca
tudo vira ouro
uma espécie
de rei midas
:
a primogênita

*

taninha

líria porto

no corpo uma tonelada
a alma uns poucos gramas
deixou-nos na flor da idade
tinha só quarenta anos
:
minha irmã

*

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

cabra cega (quem tem pena de passarinho - ed. periópolis)

líria porto

se eu te disser
lá fora tem um jardim
pensarás –– tem um jardim
:
e jamais eu te direi
lá fora tem um muro

*

d'estilo

líria porto

tem poeta com mãos de cirurgião
tem poeta com mãos de lavrador de padeiro
de jardineiro artesão alfaiate
mágico
tem poeta com mãos de tesoura
de facão de foice
tem poeta com asas com manto
tem poeta com cetro
e coroa

tem poeta que não acaba

*

domingo, 17 de agosto de 2014

lenda

líria porto

onde o judas perdeu as cuecas
havia uma mulher que amava
um traidor

ela nunca quis saber
com quem ele esbanjara
as suas trinta moedas

(benzinho queres café
ou estricnina?)

*

sábado, 16 de agosto de 2014

sem saída

líria porto

caminhar às cegas
num bater sucessivo de cabeça
:
viver é a arte de quebrar a cara
catar e colar os cacos

*

teimosia

líria porto

quando a morte aparecer
vou deixar que me carregue
mas vou pirraçar um pouco
dificultar-lhe a tarefa

*

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

cólica

líria porto

minhas reticências
deixei-as pelo caminho
:
eu já tinha cálculos
na vesícula

*

pedra e pétala

líria porto

nasceram no mesmo dia – as duas silenciosas
uma por teimosia e a outra
                                       por delicadeza

*

farejar

líria porto

um palmo à frente do nariz
isso me basta - ver mais o quê
se estou a ponto de fazer
besteira

(sem falar que daqui a pouco
vou fechar o olho)

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) di_vagar

líria porto

sentir absorver decodificar
e o desejo entrará pelos poros pele
olhos narinas boca orelhas umbigo
sexo
:
rapidinho é pra coelhos

*

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

sabe que não sei

líria porto

tudo some por aqui
agulhas sapatos versos
(até eu já sumi de mim)

*

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

a bola da vez

líria porto

sem sombra de mágoa
é que a lua míngua

ela entende os fatos
logo sai de cena

dá lugar no palco
para alguma estrela

(e o mundo gira)

*

terça-feira, 12 de agosto de 2014

máquina

líria porto

da barriga de mamãe
brotou uma filharada mas meu pai
achava pouco

queria um time completo
(titulares e reservas)

no nono menino
por motivo de saúde
mamãe fechou a fábrica

(patriarcado
sinônimo de machismo)

*

miudeza

líria porto

gostavam de dar pitaco
na minha humilde vidinha
só então eu me dei conta
formiguinha tem ferrão
:
dão mais não

*

aproveitadores

líria porto

quando a coisa aperta
o que se suporta
é fecharem as portas
também as janelas
bem na nossa cara
pois que vacas magras
não servem pra corte
e secou-se o leite
que havia nas tetas

*

fantasia

líria porto

fez de conta que ele a amava
viveu a pensar nisso por anos a fio

assim a sua vida
um canavial

*

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

quem come se lambuza

líria porto

mulheres para mais de mil talheres
somos entrada prato principal
vinho sobremesa
e cafezinho

(o vizinho lava a louça)

*

domingo, 10 de agosto de 2014

. conhecimento de causa

líria porto

quem diz que poesia tem regras
é mulher –– escrevi poemas com sangue
nas coxas

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) enfeites

líria porto

quem quiser dê pérolas aos porcos
dou ração milho e farelo

pérolas
doo-as aos dedos
às orelhas
ao colo das amantes

*

proteção

líria porto

o frio que faz o frio que tenho
o frio que o pintinho sente
longe da galinha
:
quero o papai
e a mamãe

*

mão única

líria porto

viver é uma viagem
com bilhete só de ida
uma ou outra encruzilhada
e nenhum retorno

(o destino criatura
é uma cova rasa)

*

sábado, 9 de agosto de 2014

haicai

líria porto

a lua de agosto
bem traçada com giz branco
um prato de arroz

*

marocas

líria porto

deu de caducar
vestir as roupas do avesso
chamar pelo amor que ainda vive
embora morto

*

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

chimbika

líria porto

parecia um besourinho
mas me servia
íamos por todo canto
felizinhos da vida

(air bag ar condicionado freio não sei quê
direção hidráulica e eu toda
desconcertada)

gosto de amor antigo
com alguma batida de lata
e pé duro

*

tempos modernos

líria porto

o marido o amante o amor
um diferente do outro
mas algo em comum
ela
a bela do quinto andar

*

carências

líria porto

um canudo
um buraco sem fundo
fá-lo sugar as mulheres
além do útero

*

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

derradeiro

líria porto

em noite escura
de vento forte
sem lua ou estrela
o último poema
escrito com pena
de pata galinha
ou seriema
:
no osso

*

terça-feira, 5 de agosto de 2014

maria fumaça

líria porto

fui atraída – embarquei
assim mesmo é o viver
passagem apenas de ida
paisagens labirintos
perigos túneis abismos
destino desconhecido
uma viagem de trem

vez por outra
uma estação
onde uns sobem
alguns apeiam

*

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

retaliação

líria porto

com um arpão
acertou-me no peito
puxou-me pra perto
abriu o meu couro
bebeu o meu sangue
retalhou meu coração
e jogou-o às piranhas
(pedacinho a pedacinho)
só por vingança

*

domingo, 3 de agosto de 2014

felicidade

líria porto

aviam a receita
mas não bebem da droga
que nos oferecem

*

sétimo dia

líria porto

embora seja um dia como os outros
o domingo não tem alma de faxina

*

o cocheiro

líria porto

com a sutileza de um paquiderme
a lanhar-me o corpo sulcar minha pele
fraquejar-me os ossos estalar chicote
demonstrar sem trégua quem conduz
as rédeas
:
o tempo
esse moleque

*

sábado, 2 de agosto de 2014

menino

líria porto

teu jeito me baratina
me bota fora do prumo
quando eu te vejo moleque
eu danço polka xaxado
brinco de espada de bola
esqueço que fiquei velha
e pulo como cabrito

*

pândega

líria porto

vovó é uma peça
ela dança na praça
e não existe
quem possa contê-la

vovó é figura
mamãe me procura
e ela me esconde
debaixo da saia

vovó é maluca
quando ela explode
a terra todinha
se desequilibra

vovó é uma bruxa
empurra com chucho
a tristeza a velhice
e dá gargalhada

vovó é caduca
é doida pirada
mal sabe o que fez
e desfaz-se

*

quinta-feira, 31 de julho de 2014

coragem

líria porto

olhar no olho
estufar o peito
fazer o que deve
ser feito

(não tem barriga me dói)

*

quarta-feira, 30 de julho de 2014

matança

líria porto

bati à porta da guerra
quem está aí – o general
e quem morre lá fora
as crianças e as mulheres
as tuas?
não
as minhas estão num bunker

*

desperdício

líria porto

àquele que não houve
dedico-me e me entrego
:
por ser cego
mudo

*

sangue de barata

líria porto

assim me sinto
parte do que acumulas
e ninguém percebe como estou
nem porque fico

*

terça-feira, 29 de julho de 2014

pesadelo

líria porto

dentro do sono
vasculhei o escuro
encontrei um furo
pude espiar

do lado de lá
deitado no gelo
vi meu corpo rijo
com placa no dedo

*

hibernação

líria porto

no inverno
como fosse um urso
entro na caverna
e durmo

*

segunda-feira, 28 de julho de 2014

julgamento

líria porto

a consciência pesa
a sentença da omissão
à condenação perpétua
é o remorso

*

a roupa

líria porto

enviuvou-se –– que alívio
além da fortuna o luto
cai-lhe bem

*

virtual

líria porto

há quem se delicie
diante duma câmera
tocar as partes íntimas
enquanto numa tela
um outro se exibe
faz sexo sozinho

*

domingo, 27 de julho de 2014

recolhimento

líria porto

no frio eu me enrolo - quase hiberno
troco um pijama por outro e reforço
as cobertas

é tempo de ler e gestar
versos

*

o mapa

líria porto

o nariz pinga cachaça
a boca pede queijo

a cabeça pensa
cachaça queijo
e poema

*

extinção

mudou de casa de vida de ideia
e por pouco não muda
de si

*

insone

líria porto

a poesia me queima
as pestanas

*

medo

líria porto

tateio o muro - sigo até ali - rodo sobre os pés
é sempre mais seguro o mesmo caminho

não me aventuro
sou como o cego
um prisioneiro
do escuro

*

até breve

líria porto

o corpo se esvai
o amor permanece

habita nossos sonhos
e traz de volta
a presença

(dormir é um alento)

*

pinças

líria porto

o que será de um siri
na mão de um bicho-papão?

o siri é carnívoro
vai comer-lhe a mão?

ou o papão vai comer o siri
com limão?

*

noite e dia

líria porto

e roda e roda
num passo de dança
a terra ao redor
do sol

*

im_pulso

líria porto

vez em quando mágica
um ou outro milagre
mas de tanta beleza
perdeu a conta

(nada como um dia
atrás das ostras)

*

galanteio

líria porto

passarinho me visita
vem alegre tão limpinho
o biquinho afiado
acho até que passarinho
é meu namorado

*

preconceito

líria porto

jamais comi abacate
na verdade nem provei
toda vez que vejo a fruta
penso em fralda de neném

*

devoto

líria porto

ele crê
faço milagre
mas santinha nunca fui
então diz –– adeus tristeza
dessa doença de morte
tu me livraste
:
desde então me acende vela

*

se

líria porto

fosse aranha tecia
redes para cochilo
não para pegar
mosquitos

*

bandeira branca amor

líria porto

incisivos permanentes
escondidos na gengiva
empurram dentes de leite
que bambeiam um a um
deixam a comissão
de frente
:
abrem alas para o sorriso
definitivo

*

idades

líria porto

outonas
inverno
:
prima vera
faz sucesso
com sua pele
de pétala

*

sinal

líria porto

muitos sóis muitos sistemas
planetas sem conta
a nossa alma gêmea
existe num outro plano
e para encontrá-la precisamos
libertar-nos da angústia
e da matéria

*

na vassoura

líria porto

(quem quiser me acredite – quem não quiser
afronte-me afrodite-me queime-me
na fogueira)

*

oblíqua

líria porto

a luz transversa
como fosse faca
no corpo da árvore
dessa que atravessa
corta até a alma

*

recado

líria porto

quem vir
uma besourinha
de roupa vermelha
cheia de bolinhas
favor lhe dizer
:
joaninha
vovó te manda
lembranças

*

a mágoa

líria porto

quando um furúnculo tem que vir a furo
ponho cataplasma

*

a comadre

líria porto

nós daqui ela de lá
achegamo-nos à cerca
a vaca vem

eu com os netos
ela com a bezerra

*

sábado, 26 de julho de 2014

sofrimentos

líria porto

entram pelos poros
como fossem agulhas
e atravessam os ossos

*

bigorna

líria porto

consigo dialoga
o monólogo é comigo
:
malho em ferro frio

*

escorregão

líria porto

despenco de mim
e a idade não me ajuda em nada
:
nado na lama

*

fora da pauta

líria porto

na batida
da batuta
do chicote
o poema
me obedece
porém chuta
esperneia
dá pinote

(poesia é música)

*

quinta-feira, 24 de julho de 2014

queda

líria porto

morrer é cair em si
e não conseguir
reerguer-se

*

dona natália wolfgang

líria porto

a velha alemã
(tailleur branco meias finas e mãos frias)
parteira de ricos
pegou-me pelos pés
(eu – a filha de um simples comerciante)
espalmou com força o meu traseiro
e me jogou nesse mundo
:
berrei como um bezerro

*

quarta-feira, 23 de julho de 2014

reboco

líria porto

dentro de nós
tantos nós
os que fomos
o que somos
os que quisemos ser
(e não conseguimos)
os que nem sabemos
porque escondidos
no inconsciente

fora de nós
tantas máscaras
tanta falta
tanta aparência

entre nós
amarrações

*

terça-feira, 22 de julho de 2014

rotação

líria porto

de girar na tua órbita
esperar inutilmente
tonteei
bati cabeça

recuperei o meu eixo
redescobri minha essência
vivo por conta própria

*

domingo, 20 de julho de 2014

debandada

líria porto

trouxemos duas
chegaram então mais duas
e o bando de seis
durou quase de vinte anos

uma voou do ninho
o macho se foi
outra voou
e mais outra
:
quando alcei voo
soçobrou uma andorinha
que logo se recobrou
e também voou

(voltei
para apagar
as luzes)

*





domínio

líria porto

o galo nem olha
pra galinha velha
cheia de pelancas
sobe-lhe nas ancas
mete-lhe as esporas
depois faz o mesmo
com outras frangas
:
ele –– o dono da crista
o rei do terreiro

*

cadê-me?

líria porto

salvador daqui
salvador dali
salvador de todo lugar
estou mais perdida
que agulha na veia

*

transparências

líria porto

puta que se preze usa batom
perfume é ótimo complemento
de roupa nem precisa
ao que pese –– um mistério
é sempre bom
:
um xale de tule

*



antecipação

líria porto

nasci antes desse tempo
jamais consegui fumar
como se adivinhasse
que me iriam proibir

*

sábado, 19 de julho de 2014

cricri

líria porto

meu
grilo
é
um
louva-a-deus
no
pátio
da
igreja
sem nenhum
pensamento
na
cabeça-de- prego

*

sexta-feira, 18 de julho de 2014

inconsciente

líria porto

o que escondo do mundo
até mesmo de mim
não é bonito

(fosse não usava disfarce)

o que mostro ao mundo
não tira a máscara

*

bocas

líria porto

não só beijos palavras choro riso saliva
também gritos baba e ranger
de dentes

*

aventura

líria porto

um pisca alerta me diz
tem cuidado tem cuidado
eu fecho os olhos e atiro-me
um voo cego é o início
dos casos de arrepiar

*

educação

líria porto

caminhamos em corredores
(quanto mais largos melhor)
com paredes de vidro
a indicarem a fronteira
entre uns e outros

) para o corpo
liberdade tem limite (
não para a mente 

*

quinta-feira, 17 de julho de 2014

caranguejar

líria porto

mais fofa que a areia
tem olhos que saltam
da órbita

maria farinha
ela anda de banda
e eu de bonde
:
para onde?

*

quirera

líria porto

quieta e quentinha
deitada sobre dez ovos
dona galinha

dentro de uma semana
quando nascerem os pintinhos
ela deixa do ninho

piu piu piu có có có
tomara tudo aconteça
num dia de sol

(cuidado com as bicadas
dona galinha defende
a ninhada)

*

quarta-feira, 16 de julho de 2014

a visita

líria porto

só tive olhos pro amor
e sua pele era pálida
e sua chama era tênue

só tive olhos pro amor
e ele se foi - não viu o céu
nem o sol

*

terça-feira, 15 de julho de 2014

paranoia

líria porto

a lagartixa se espicha
vigia de um lado e de outro
permanece nesse estado

lagartixa é crocodilo?
lagartixa é jacaré?

(lagartixa tem razão
esse mundo é doido
e é doído)

*

carência

líria porto

um lugar uma sopa
um pão
um agasalho ou coberta
uma companhia
qualquer coisa serve
numa noite fria

*

ensinamento

líria porto

sapo pai chama o menino
vem aqui meu girininho
vou te ensinar umas coisas
logo logo terás pernas
mas perderás o teu rabo
co'as pernas virão os pulos
não podemos é ter tudo
e rabo algum fará falta

(a lagoa é boa)

*

segunda-feira, 14 de julho de 2014

agora

líria porto

aqui em casa faz frio
e debaixo da marquise
debaixo do viaduto
só de pensar
arrepio-me

então os dois cobertores
aqueles que eu nem uso
que guardo para as visitas
mando-os a quem precisa
que viver não é depois
e nem ausências
têm corpo

*

arapuca

líria porto

não quero não posso
não devo
algo me diz não o faça
mas um diabo me atenta
e sem que eu o perceba
outra vez caio
em teu laço

*

sábado, 12 de julho de 2014

no avesso do direito

líria porto

dos ateus dos comunistas
o céu é dos humanistas
que entre nós não há deuses

somos todos como os bichos
todos os seres – terra rio barro
pedra

*

sexta-feira, 11 de julho de 2014

teima

líria porto

o castigo humilha-o
mas ele finge

quem não é o maior
precisa parecer
invencível

*

esquadra

líria porto

olha bem o teu reflexo
e verás um barco a remo
transportar tua infância

daqui a algumas décadas
precisarás caravelas para carregar
lembranças

*

sossego

líria porto

todo o silêncio do mundo
lá no barulho do mato
a água que cai da bica
o vento entre os bambus

*

decadência

líria porto

desabo
sem chão e sem teto – sou eu
tudo o que me resto

*

o fantasma

líria porto

de dia distraio-me
à noite eu me banho
perfumo-me
abraço-me ao travesseiro
e te espero até quando
lençol branco?

*

quarta-feira, 9 de julho de 2014

a cisterna

líria porto

retirava a terra seca
depois as latas de barro
acertava bem as beiras
cavoucava até achar
cristalino lençol dágua

forrava então as paredes
fazia um muro no entorno
preparava um cavalete
corda balde manivela
e matava nossa sede

(crianças
fiquem
longe
do
poço)

viver é um ministério

*

terça-feira, 8 de julho de 2014

(para o livro sem pecado não tem salvação) danada

líria porto

menina da pá virada
não obedece ninguém
só chega de madrugada
só anda com não sei quem

quando alguém a interpela
menina apela e diz coisas
impróprias para as donzelas
para as moças casadoiras

(na
escola
menina
vai
bem)

*

domingo, 6 de julho de 2014

valente

líria porto

quando defendo meu gado
quando protejo meu filho
não tenho medo de nada
nem acho a vida difícil

*

provador

líria porto

passarinho demonstrou
figos roxos são tão doces
quanto as bocas das princesas

*

raios me partam

líria porto

eu bato a pedra na pedra
dou um soprinho na palha
e invento o incêndio

*

confronto

líria porto

o tom que usaste
não te devo explicação
sobre o piercing

ninguém me interpele
tatuagem é questão
de foro íntimo

não te atendo a ligação?

*


sábado, 5 de julho de 2014

cangalha

líria porto

alheios à nossa vontade
os acontecimentos
e seguimos qual gado
para o matadouro

pancada na nuca
a vida nos mostra
quem manda

*

abuso

líria porto

debaixo da cama no vaso do banheiro
ou no ralo da pia?

quem escondeu o meu son(h)o
não devia - eu tinha que lhe impor
um limite

*

quinta-feira, 3 de julho de 2014

pé atrás

líria porto

gato escaldado tem medo de água fria
gato escaldado tem medo de água
gato escaldado tem medo
gato escaldado
                          tem pavor

*

demais

líria porto

tudo que eu faça
tudo que eu possa

a unha quebrou no canto?

não é para tanto tu te recuperas
outros têm câncer

*

quarta-feira, 2 de julho de 2014

invisível

líria porto

sem precisar de estrada
chegar partir retornar
ser apenas pensamento
ideia
reflexão

*

terça-feira, 1 de julho de 2014

ioiô

líria porto

ele me acena
vou com o rabinho entre as pernas
ele me dispensa

*

domingo, 29 de junho de 2014

jabuti

líria porto

o cágado a tartaruga
uma ruga dentro
                  do casco

*

desamparo

líria porto

maria choveu enxurrou encolheu-se
e ninguém enxugou os rios que escorriam
dos seus olhos

*

secura

líria porto

pisar repisar uvas verdes
retirar suco de pedra

*

sábado, 28 de junho de 2014

erosão

líria porto

falavas-me de tempestades
enchentes aluviões
não dos chuvisqueiros
e respingos

quero a garoa
a conversa mansa
que faz brotar
a lavoura

*

emergência

líria porto

troca-se
o velho coração
repleto de afetos
a ponto de explodir
por outro moderno
com vãos livres
alarmes
porta giratória
e saída de fuga

*

sexta-feira, 27 de junho de 2014

derrota

líria porto

há dias de poema algum
versos camuflados palavras ocultas
borrão nas letras
:
dias de lixeira
e mudez

*

quinta-feira, 26 de junho de 2014

ocorrências

líria porto

a bruxa mocreia
de olheiras tão roxas
odor de gambá

quatro mariposas
em volta da lâmpada
voam e revoam

diabo capeta
seu cheiro de enxofre
fedor de morrinha

lagarta peluda
calombo coceira
cicatriz futura

a lua de agosto
o rabo entre as pernas
o cachorro doido

*

centopeias

líria porto

pés articulados presas venenosas
eu fujo das lacraias elas fogem
das corujas

*

terça-feira, 24 de junho de 2014

viuvez

líria porto

quem vem para o frio
quem vem para o chá
eu fervo e não há
quem me adoce

*

unguento

líria porto

para aliviar a vida
dar-lhe algum alento
só tenho comigo
lápis e papel
porém não consigo
meu verso é pequeno
não toca profundo
as dores as feridas
que maltratam
as lendas

*

segunda-feira, 23 de junho de 2014

pupila

líria porto

ao sabor do vento
é que entro no olho
do furacão

como um cisco
um fragmento
um corte na pálpebra

*

domingo, 22 de junho de 2014

cota

líria porto

(meu homem não dorme comigo
sou a outra –– a sócia
minoritária)

*

loucura

líria porto

confundiu as horas
cantou o tempo todo
(manhã tarde noite)
o galo ficou rouco
deixou o sol maluco
a lua neurótica

*

por fora

líria porto

vovó governava vovô
pensava assim garantir-se
mas o danado do velho
teve no desvio
mais um outro filho

*

arrudas

líria porto

não tive mar
meu rio virou esgoto
a transportar bosta e mijo
por baixo dessa avenida
que lhe esconde
a vergonha

*

arquitetura

líria porto

palavras pensamentos gestos emoções
e mais que tudo – um poema é feito
de susto

*

o menino

líria porto

inventa palavras olhares sorrisos
esse é francisco – meu neto de três anos
quando ele chega pleno de alegria
parece haver guizos brilhos
e faíscas

*

arado

líria porto

a junta de bois
a rasgar o chão
remexer a terra
afundar os sulcos
para o plantio
do feijão
do milho

(a enxada
deixada no canto
repousa calada
merece o descanso)

*

bucha de canhão

líria porto

o homem pobre
é de alguma forma
a massa de manobra
usada pelo rico
para garantir
vantagens
benefícios
à sua vida pífia

*

únicos

líria porto

podemos ser amados pelas qualidades
talentos aparência
também pelos erros faltas e defeitos
pelo simples fato de sermos
nós mesmos

*

gatilho

líria porto

cisco no olho pedra no sapato
fome dor ou sede – pequeno salário
podem dar ao homem a motivação
pra mudar as coisas e lutar por outra
relação de forças

*

fatídico

líria porto

a lua plena de maio
que outrora me enchia os olhos
d'agora em diante deságua-os

(eu vou morrer de saudades)

*

quarta-feira, 18 de junho de 2014

engasgo

líria porto

raramente somos um só
agora estou – eu só eu
com uma faca no peito
e um nó na garganta

*

repescagem

líria porto

a névoa embaça-lhe o olhar
nos cantos da boca o silêncio
a dor na carne nos ossos
procuro a mulher suculenta
pergunto cadê minha mãe
que se perdeu de si mesma
nas brenhas do esquecimento

toco seu rosto os cabelos
recordo o cheiro do leite
aperto seus dedos trêmulos
e sinto aquela saudade
de quando ainda menina
agarrava-me à sua saia
só para tê-la por perto

na cama a casca resiste
eu fico triste a pensar
na sua breve partida
tantos a esperam por lá
onde residem as estrelas
seus pais seu amor
sua filha

*

várzea

líria porto

pendurei as chuteiras
já não suporto bolas divididas
nem ter que matá-las
no peito

*

capitalismo

líria porto

umas mãos pescam as ostras
outras mãos usam as pérolas

*

terça-feira, 17 de junho de 2014

hibernação

líria porto

uma topada no dedo
uma palavra rombuda
o dia foi do avesso
a noite veio contudo
nem sonho nem pesadelo
dormi como um urso

*

borracha

líria porto

esclarecidos os fatos
tirar os pingos dos iis
que é para não nos restar
nenhum resíduo de dúvida
nenhuma mágoa

*

segunda-feira, 16 de junho de 2014

sádico

líria porto

com a ponta do dedo
cavoucas a minha dor
puxas com tua unha
o meu desespero

*

além

líria porto

voo e vinho
volto para onde
fiquei sem estar
estive sem sair
e a tua estrela
brilha

no espaço de ti
que partiste
e aqui continuas
do lado de dentro
da pele

*

cuidado

líria porto

pesar as palavras medi-las
polir as pesadas as brutas
soldar as quebradas
:
(merda é esse embrulho
no estômago)

*

domingo, 15 de junho de 2014

absorventes

líria porto

já fez versos de silêncio escritos dentro do útero
usava tinta vermelha – não conseguia detê-los
quando os paria eram gritos

*

sábado, 14 de junho de 2014

momento

líria porto

quem move esse lápis enquanto escrevo
não sou eu nem os meus dedos
são as contingências

*

desertos

líria porto

o que será dos meus netos
a herança que lhes deixo
um planeta virulento
repleto de lixo atômico
de florestas dizimadas
de leitos e rios
secos

*

afinal

líria porto

nem tragédia nem comédia
a vida é um drama –– uma novela
mexicana

*

sexta-feira, 13 de junho de 2014

da arca de noé à torre de babel

líria porto

o grande o pequeno o absurdo o invisível o improvável
o amor o ódio o céu o inferno o ar o mar a terra o rio a floresta
o incêndio o dilúvio o barulho o silêncio
o jogo a jogada a malandragem
o feio o bonito o olhar
o orvalho a flor a raiz a poesia
quaisquer sentimentos quaisquer palavras
deus e o diabo dentro
do poema

*

quinta-feira, 12 de junho de 2014

blefe

líria porto

traçada por mão exata
exímia mão de artista
que sequer usa compasso
a lua dos namorados
pouco a pouco
esfarinha-se

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

Arquivo do blog