líria porto
descascar abacaxi
tirar escama de peixe
catar piolho em menino
cortar as unhas do pé
fazer o salário chegar
ao final do mês
*
líria porto
o aroma da padaria
penetra minhas narinas
e o cheiro do pão quentinho
leva-me a engordar
uns dois quilos
todo dia
*
líria porto
rir em tempos medonhos
pode parecer cinismo
não é
é um esforço sobre-humano
para resistir
para não se deixar morrer
de tristeza e desespero
*
líria porto
quando eu for pra eternidade
irei vestida de sol
tomara eu tenha coragem
pra atravessar esse umbral
nem que seja num funil
enrolada em gaze azul
ou com a casa nas costas
tal qual fosse um caracol
*
líria porto
naquela noite
engravidou-se de deus
viu nascer tanto poema
uns com asas uns sem pena
outros apenas
de névoa
:
depois sangrou
ficou quieta quieta
e dormiu o sono eterno
*
líria porto
fugisse de ser madame
(daquelas do high society
talvez uma semi-hippie
até mesmo outra avozinha
ou freira velha
ou beata
mas não se achava adequada
para quaisquer modelitos
:
restou-lhe ser ela mesma
meio bruxa / benzedeira
fazedeira de milagre
avulsa
livre de cismas
*
meu leite não brotou para a primogênita
inflamou-se o meu peito para a caçula
porém a segunda - esta me mamou inteira
até mesmo quando a terceira
já habitava meu útero
*
ia de bengala - a pender pro lado
como se tentasse encostar em alguém
e movia os lábios
às vezes sorria
:
todos o olhavam
faziam comentários
as bodas de diamante
a festa no clube
a viagem de navio
(convites distribuídos
passagens compradas)
seriam mê que vem
*
a bola de neve
presa no guindaste
foi arremessada
sobre a fachada
do velho cinema
esse amontoado
de madeira e entulho
suspiros e terra
amassos e beijos
dentro do escuro
*
ralava cenouras cebolas medos
picava folhas de couve
quiabos espantos
cheiro-verde
:
até sangrar os dedos
e a solidão
*