tanto mar
–– a mão que governa o verso balança os muros –– (líria porto)
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
noitada
líria porto
de morte não
morreu de vodka
bêbado como uma égua
*
as quatro faces
líria porto
eu não sou eu
e a máscara que me cobre o rosto
sequer disfarça o outro
(serei um terceiro
que desconheço e um dia
virá de dentro do quarto
torcer meu pescoço?
quem vai me salvar
de mim?)
*
poder
líria porto
escondidos por trás de sorrisos
querem nos comer
vivos
*
acima de quaisquer suspeitas
líria porto
acorrentava-me
mordia-me os mamilos
enfiava sob minhas unhas
farpas alfinetes
agulhas
depois ia à padaria
*
na mira
líria porto
tirou a farda
(a arma sobre o criado-mudo)
quis apagar o meu fogo
(um perigo esse soldado
que faz o criado gritar)
*
incapaz
líria porto
sequer um verso na agulha
disparo o gatilho e não há
estampido nem susto
*
desvios
líria porto
enfiou-lhe um prego
depois um fósforo aceso
e ao final um saca-rolhas
(torceu e puxou)
seus olhos brilharam
:
sempre gostou de
ver-me-lho
(nenhum contato de pele)
*
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
metódico
líria porto
tudo dentro dos conformes
hora disso hora daquilo
o tempo delimitado
eis que chega o imprevisto
e o dia vai para o ralo
há sempre um vírus à espreita
uma casca de banana
um beijo mais demorado
uma alegria ou tristeza
um rabo de saia
*
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
sem dó ré mi
líria porto
jogou-me do alto
reteve minhas asas
e nenhuma nuvem
para me amparar
cabeça na pedra
os miolos voaram
:
o coração segurei
com as duas mãos
*
nau frágil
líria porto
procurei por algo firme
encontrei pedra de gelo
o sol veio e à deriva
escapei por mão do amigo
cujo barco pescava
tristezas
*
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
humano
líria porto
coração não tem
botão liga/desliga e nem é
movido a pilha
corpos não são
robôs bonecas fantoches
marionetes
:
amam odeiam sofrem sonham
choram riem acertam erram voam
comem defecam
pensam
(no osso)
*
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
renúncia
líria porto
igual hiena
por dentro nem deus sabe
rasgada
triste como a terra seca
onde nada nasce
riu da vida
de pena de raiva
de si
:
abriu mão
*
espectro
líria porto
já não posso beijar a tua boca
viraste cinzas
eu não ia beijar a tua boca
já eras cinza
e me queimavas
*
descompromisso
líria porto
desmanchei a manhã
e assim de mancheias
eu me banho de creme
e argumento
manchei amanhãs
e segundas-feiras
*
areia
líria porto
swings
ménages
orgias
migalhas
:
desertos
*
domingo, 23 de fevereiro de 2014
princípios
líria porto
zelar as sementes
plantá-las em seu tempo
regá-las
vê-las brotar e crescer
fazer a capina
retirar as lagartas
a praga
colher
repartir o produto
sem se esquecer de guardar
as sementes do futuro
*
escaldante
líria porto
beduíno num camelo
o amor monta em mim e atravessamos
o deserto
*
sábado, 22 de fevereiro de 2014
cura
líria porto
se a dor voltar
deito-a em minha cama
e durmo no sofá
*
a prata da casa
líria porto
eu não quero tudo
eu não quero nada
na verdade eu nem quero
pra não ter trabalho
*
distúrbio
líria porto
não me acho
também não me procuro
prossigo assim perdida
agulha no palheiro
*
marasmo
líria porto
perdeu mão do verso
e sem o seu estro
tal como um camelo
a pastar desertos
ruminar areias
carregar no ventre
cólicas e cãibras
:
fomes despoetam-nos
*
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
cansaço
líria porto
para os uivos do corpo
ouvidos de mercador
para o silêncio da alma
alto-falantes
*
ioiô
líria porto
trancas tua cara e não tenho a chave
então eu me zango e tu sais pra rua
sinto tua falta mas assim que voltas
a mágoa retorna e com ela
a raiva
(salgo demais a comida)
*
reviravolta
líria porto
maria temia os homens
o pai o irmão o marido
resquícios de um tempo ido
de servidão e silêncio
o abandono o desterro
maria fortaleceu-se
não quer nem precisa dono
comanda as rédeas do eu
*
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
vermelhos
líria porto
outubro me lembra almodóvar
(nasceu em setembro –– não deveria)
vinícius drummond lula
e eu
*
má-criação
líria porto
muitas vezes a favor
outras contra o vento
ora corro ora empaco
que subir e descer
depende
*
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
neuróticos
líria porto
somos tantos
o que nascemos
o que queriam que fôssemos
o que podíamos ser
quem nos tornamos
:
cada dia uns
e nem sempre os mesmos
*
sombras
líria porto
depois de noites e noites
de escuridão tenebrosa
vislumbrou o céu a estrela
o vulto da lua nova
só então venceu o medo
saiu de si – foi lá fora
*
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
desordem
líria porto
aqui ali acolá
em todo lugar que se olhe
as coisas desarranjadas
e a vida
esta turbulência
*
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
textura
líria porto
rendo-me à francesa
qual um voile
um tule
*
domingo, 16 de fevereiro de 2014
panorama
líria porto
olhos não atravessam montanhas
o jeito é encarar a subida
*
geleira
líria porto
a lua jazia
o céu despencara
e o sol - ah o sol
era um coração
sem flama
*
carinho
liria porto
ao homem
com nome
de peixe
e nariz
de batata
eu mando
mil beijos
:
às pencas
em caixas
*
sábado, 15 de fevereiro de 2014
como me conter?
líria porto
um touro na alma
tu surges com manto vermelho
e me pedes doçura
eu quero
sangue
*
necessidade
líria porto
não chovas no molhado
a precisão é do seco do árido
do ser_tão
*
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
paralelos
líria porto
tu e eu
lado a lado
sem nos tocar
*
emoção
líria porto
essa luz transversa
que me atravessa
todo fim de tarde
dá-me arrepio
eu não sei se rio
ou se verto lágrima
*
fiscal
líria porto
o meu verso enxuto
de poucas palavras
a ele computo
a missão do guarda
de só conferir
meu olhar arguto
depois de algemar
minha própria alma
*
par'adão
líria porto
vou plantar em meu canteiro
as sete alfaces de eva
*
cuidados
líria porto
prendia entre os joelhos
o corpo de cada filho
catava lêndeas piolhos
olhava-os depois com orgulho
pobres porém limpinhos
:
as roupas?
sempre em frangalhos
*
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
abalroamento
líria porto
esbarrou em mim
não me amassou e nem nada
mas conta pra deus e o mundo
que tivemos um acaso
*
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
físico
líria porto
não me chegas às veias
menos ainda às artérias
tu apenas me aconteces
abaixo da cintura
*
líquida
líria porto
incomodo-te e ainda me agradeces
por molhar a tua boca e matar-te
a sede
*
lataria
líria porto
por merecimento
amigo
serias trilhardário
ainda assim és rico
não te lamentes por teres amassado
o fusca
as portas permanecem abertas
*
ressonância
líria porto
coração não dá sossego
toca bumbo zabumba tarol
na banda esquerda
bam bam
bam-bam-bam
*
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
nem sempre é bom
líria porto
nasci de minha mãe
mas é de mim que renasço
alguma vez até tive
depressão
após o parto
*
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
enigmas
líria porto
o que há
o que é
o QI
o que oh
o cu
*
ambição
líria porto
por um verso irretocável
deu a alma pro capeta e o corpo
ao sacrifício
:
nem assim
*
nascimento
líria porto
não um verso qualquer
desses já fizeram
eu já fiz
quero um verso tão bonito
que provoque choro e riso
ao mesmo tempo
(como parir um filho)
*
domingo, 9 de fevereiro de 2014
barulhos
líria porto
tem hora que penso alto
tem hora que penso baixo
tem hora que penso raso
tem hora que penso
e afundo-me
*
sem piedade
líria porto
não lhe dou de beber
por mim a dor
morre seca
*
diferenças
líria porto
rosa rosa era rasa
não amou príncipe negro
por preconceito de raça
rosa rosa desfolhou
príncipe negro também
(a morte é democrática)
*
vingança
líria porto
coço-me
até
virar
ferida
só
para
arrancar-me
a
casca
*
ponto cego
líria porto
eu olho para o dedo
o dedo não me olha
mas me aponta
um defeito
não sabe que vejo
sua unha suja
*
pensamentos
líria porto
sabem minhas senhas meus códigos
meus segredos
meus passos meus erros
meus defeitos
mas não sabem o que penso
:
toda cabeça é um cofre
*
sábado, 8 de fevereiro de 2014
atropelamento
líria porto
o que te rasga por dentro
é um caco de garrafa
ou um pensamento?
o que te amassa por fora
é o tempo a idade
ou o teu relógio?
*
lascívia
líria porto
sem limite
sem roupa
nem nada
nós dois
como o boi
e a vaca
a pastarmos
o capim
eu de ti
tu de mim
*
dimensão
líria porto
teu nome meu nome o de deus
do amigo do amor
o da pátria
tudo em letrinhas minúsculas
como o verme a formiga
o mosquito
o vaga-lume
tudo é nada
e é tudo
*
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014
serviçal
líria porto
troca os cabides
arruma as gavetas
organiza a papelada
mata os cupins
dobra as calcinhas
põe os sapatos nas caixas
não tem nada divertido
nesta casa?
*
maledicência
líria porto
desde que o mundo é mundo
seja homo seja hetero
–
de um jeito ou doutro
mete o pau na mulher
*
nódoas
líria porto
não fosse o céu tão perfeito
limpíssimo esterilizado
(eu não suporto certezas)
aceitava virar santa
casar-me com antônio
de pádua
*
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
atchim
líria porto
aspiro meu próprio pó
inspiro-me mas depois
espirro
doença autoimune
(e não tem vacina)
*
picolé
líria porto
num calor desses
soverto-me para sorver-te
*
(in)consciente
líria porto
sou dois
um que não sei
outro que sei só um pouco
*
embatucada
líria porto
animação dos infernos céu é monotonia
preciso dormir e o que quero
é a paz do cemitério
todo santo é fingido
ando sem lugar
*
alto lá
líria porto
ninguém me ganha no grito
agudos são graves e meu ouvido
não é paiol
*
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
associação
líria porto
a mesa de mármore
a pedra deitada e fria
como um cadáver
*
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
travas
líria porto
timidez é freio
cela onde se prende os desejos
com algema e corrente
*
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
cavalo branco
líria porto
meu primeiro namorado
surgiu do nada
sentou-se a meu lado
segurou a minha mão
e no final do filme
pediu licença
e saiu
(não falei uma palavra
nem sei se é história real)
*
um homem triste
líria porto
mordi aquele um – afundei nele meus dentes
senti o gosto do sangue
e cuspi
:
era tão amargo aquele um
*
no extremo
líria porto
capo letra capo palavra
até homem eu capo
se for preciso
*
(para o livro sem pecado não tem salvação) a aranha
líria porto
tantas pernas
entre as pernas da madame
que coisa mais cabeluda
*
domingo, 2 de fevereiro de 2014
das espertezas
líria porto
no canto da sereia eu não caio
deixei de ser ingênuo
*
pinóchio's
líria porto
bicão oco terno preto
papo amarelo olho grande
eu não confio em tucano
*
sábado, 1 de fevereiro de 2014
gula
líria porto
não come bolos nem doces
e nem se comporta mas me lambe
os dentes
*
tenência
líria porto
falar o necessário
sem te magoar
sem me omitir
a sinceridade
a sua volúpia
dão poder
à língua
:
no entusiasmo
boca de siri
*
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(líria porto)
*
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é passarinho
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