quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

velocidade

líria porto

minuto a minuto
dia após dia
ano após ano
o tempo empurra-nos
vamos da infância
à velhice
:
com acidentes
no percurso

*

intuição

líria porto

fechar os olhos
respirar fundo
e meio às cegas
seguir o faro
algum ruído
que os instintos
como bússola
conduzem-nos
ao lugar
da procura

*

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

raios

líria porto

paixão é fogo de palha
começa numa fagulha
há labaredas incêndio
e em pouco tempo
esfuma-se

*

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

gula

líria porto

nós que temos tudo
não precisamos
tirar a marmita
dos famintos

um egoísta
come e vomita
ainda assim
assalta o público

*

domingo, 27 de dezembro de 2015

consumismo

líria porto

é-me caro
porém eu quero
um cu novo
que o meu
não tem reparo

*


sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

céu da boca

líria porto

para aguçar o paladar
evitar açúcar

com a ponta da língua tocar algo azedo
uma vez duas vezes
três

depois jiló
a delícia das coisas amargas
com um tanto de pimenta

(doce
basta-nos
a vítima)

*

casa grande

líria porto

entre a pia e o fogão
a menina e a tia da menina
as duas de avental 

nos sofás e redes
as crianças brancas e a certeza
da ceia e dos presentes

*

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

aurora

líria porto

tão bonita essa menina
roupa lilás tons de rosa

usa a fita do arco-íris
água-de-cheiro perfume

galos cantam quando surge
para acender o sol

*

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

até breve

líria porto

assim despeço-me
ontem foi chuva
por hoje é sol

arre_galado

líria porto

biquei a casca abri o olho
e um espanto atrás do outro
conseguiram me chocar

*

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

batente

líria porto

pedra no fundo do rio
o corpo de bruços na cama
cansado da lida 

*

presente

líria porto

o relógio da minha mãe
doei-o à minha filha
não perco tempo
comigo

*

mortificação

líria porto

disseste-me
sou um homem triste
:
o que querias – macerar-me
culpar-me pelas desditas?

*

regalias

líria porto

café de homem
(forte e amargoso)
porém feito por maria
o compadre era tão macho
não passaria o vexame
nem se daria ao trabalho
de buscá-lo na cozinha

*

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

.nudez

líria porto

acostumei-me de tal forma
a ficar comigo
que dei de tomar
liberdade

*

fura-olho

líria porto

não fumo maconha
não bebo até cair
(sou mesmo careta)
e o olho vermelho
não é de chorar
:
o cílio crescia pra dentro
(sou eu contra mim)

*

pobre diabo

líria porto

endeusei aquele homem
aquele com pés de barro
depois eu o cimentei
num buraco
            a sete palmos

*

domingo, 20 de dezembro de 2015

pasmo

líria porto

zonzo
eu me benzo
e ao fim
pergunto
ao parlamento
onde foi parar
o cadáver
de bin laden?

*

enclausurados

líria porto

teus olhos – prisioneiros da treva
não impedem que vejas além dos homens
das verdades que carregam

*

sábado, 19 de dezembro de 2015

repeteco

líria porto

tudo já foi escrito tudo já foi traçado
por que insistirmos nisso –– reinvenção
do quadrado?

*

a viagem

líria porto

remédios roupas sapatos
joias dólares maquiagem
deixou a mala pra trás

(e um corpo
na mortalha)

*

ilusões

líria porto

foice e martelo
no natal ou noutra noite
sem papai noel

*

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

íngreme

líria porto

as ladeiras as escadarias
subo-as de costas
e a cada passo
degrau
o mundo se descortina
os olhos veem
mais longe

*

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

impontual

líria porto

o verso vem quando quer
às vezes demora tanto
que o aguardo
na cama
:
ele me roça os cabelos
e se infiltra no sonho

*

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

quem sabe?

líria porto

toda vez que o cumprimento
ele desvia os olhos – fixa-os no meu peito
:
timidez ou atrevimento?

*

derradeiro

líria porto

entre muros
descarnados e sem voz
os que se foram antes
os que esperam por nós

*

homúnculo

líria porto

a mulher idealista
o corpo todo suado
trabalhava noite e dia
ele –– hóspede –– boa vida
a questionar coisas tolas
da forma mais ordinária
:
um rato dentro da roupa

*

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

introspecção

líria porto

o horizonte cambiante do futuro
sua fonte inesgotável de incertezas
qual areia movediça nos conduz
ao profundo de nós mesmos
:
o momento é turvo

*

fraquezas

líria porto

por que não mostro
o meu avesso
todos os nós
fechados dentro?

por que não falo
dos meus defeitos
das tantas sombras
dos muitos medos?

por que não abro
meu coração
não me redimo
de toda a mágoa?

por que não digo
dos sofrimentos
por que não rasgo
a minha máscara?

*

(peguei o sol no pulo) a grosso modo

líria porto

depois do fogo do gelo
o mundo virou um brejo
e surgimos bactérias
fomos insetos e vermes
assim passamos milênios

já tivemos couro escamas
e pelos e penas e plumas
criamos patas e cauda
e faz pouquíssimo tempo
largamos mão de ser
símios

(tem homem de rabo preso
tem verme substituto)

*

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

inquisição

líria porto

um pangaré um burro chucro
u'a mulinha –– só não quero ir a pé
pra guilhotina

cada falso me condena
(filho duma égua)

*

domingo, 13 de dezembro de 2015

nimbos

líria porto

temporal à vista
trovões relâmpagos vento
as nuvens espessas

*

a gota d'água

líria porto

pediu-lhe um café
coou-o
achou que ficara ralo
pôs numa xícara
bebeu um gole
pôs noutra xícara
serviu-o

empurrou-a
: não quero

: ficou forte
e amargo
como gostas

: não quero
a minha é sempre
a primeira

: ah é?
não mais te sirvo

(e deu no pé)

*




*

à luz

líria porto

noite prenha parruda
uma estrela reluz
ao lado da lua
:
uni_versos
da treva

*

quase

líria porto

vimo-nos apenas
por alguns momentos
e teve o sabor
do fruto de vez

mal olhei seu rosto
não lhe dei um beijo
porém me recordo
de cada minuto

pudesse voltar
retornava no tempo
ficava por lá
talvez para sempre

*

(des)engrenagens

líria porto

ronco de motor
o barulho vinha de dentro
alguém dormia profundo
e o mundo girava
girava

no espelho
três ou quatro cabeças
uma delas pendida
(perdida)
sugava-me o seio

(eu via de olhos fechados
sentia)

*

sábado, 12 de dezembro de 2015

haicai

líria porto

urubu no toco
depois da chuva ele seca
as asas abertas

*

haicai

líria porto

igual bailarina
a garça na beira da água
as pernas compridas

*

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

cartinha

líria porto

papai noel
em seu saco elástico
ponha os da mesma farinha
leve-os para o polo norte
sem trenó para retorno
e sem taco de golfe

*

verme

líria porto

na sucursal do inferno
cunha-se o demônio
:
seu bafo de enxofre
causa diarreia
e vômito

*

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

do impeachment

líria porto

dona baratinha foi ingênua
não se casa com ratão
impunemente

*

congresso

líria porto

aranha mosca verme
morcego barata ratazana
catarro mijo bosta
:
esgoto
pesadelo
fossa

*

medida improvisada

líria porto

acerca dos acontecimentos
melhor passássemos a cerca
confinássemos os roedores

*

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

bento rodrigues

líria porto

a vida daquele jeito
de cabeça para baixo
e a contaminação
do barro

do jeito que era
nunca mais vai ser

*

último ato

líria porto

doíam-lhe os ossos os músculos as vísceras
mas o coração – em consciência
deixou de bater

*


domingo, 6 de dezembro de 2015

picadeiro

líria porto

o mundo
um imenso circo
e cá estamos –– palhaços
equilibristas dançarinos
mágicos malabaristas
engolidores de fogo
e de mentiras

*

viver

líria porto

manobra arriscada
da qual não se escapa incólume
a gente nasce acelera
faz curvas
atravessa as serras
e cai no despenhadeiro

*

sábado, 5 de dezembro de 2015

estrábicos

líria porto

a lua não é tua
não é minha
a lua é nossa e é única
mas refletida na poça
a lua é duas –– tu e eu
espelho meu
:
plural e singular

*

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

alpinista

líria porto

o sol vai alto
escala o azul
finca bandeira
bem no umbigo
do meio-dia

*

tempos modernos

líria porto

dois homens
com um falava ao telefone
o outro entre suas pernas

( os dois de bigodes)

*

trabalheira

líria porto

após a chuva
o sol vem de sola
passa o rodo e seca
a rua

*

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

maria

líria porto

das lembranças mais remotas
os medos da minha avó
trovejava ela encolhia
amuava-se num canto
fechava os olhos
rezava
e eu morria de dó
queria tê-la ao colo
dizer-lhe – acalma-te vó
é só uma chuvinha

*

função

líria porto

acordo
escrevo um verso
viro pro canto
durmo de novo
choco outro ovo

*

palavra

líria porto

não pego no pé da letra
deixo-a livre para ser
o que se lhe der na telha

*

olhar

líria porto

poeta é como fotógrafo
capta a magia do instante

poeta é como pintor
dá pinceladas de luz

poeta é como criança
fura o dedo nas estrelas

poeta é homem ou mulher
à flor da pétala

*

deficiência

líria porto

a cicatriz junto ao nervo
seria cegueira
e treva
não tem a vista perfeita
vê no entanto o que precisa
para juntar ao que sente
e fazer o verso

*

tempo integral

líria porto

eu escrevo quando acordo
eu escrevo enquanto durmo
escrevo dia e noite
em claros e lusco-fuscos

(e leio nos intervalos)

*

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

destino

líria porto

seja o que for
se foi traçado
será

a vida não permite rasura

*

o bacalhau

líria porto

o desejo desse gajo
porém perdi o traquejo

o seu falo se intumesce
não pretendo abrir as pernas

vai dessalgar-te no tejo

*

de pantufas

líria porto

mansa a manhã
de tão branda
o canto do bem-te-vi
descortina a madrugada
e dá trégua para o galo

*

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

consolo

líria porto

quando o compadre se foi
de tanta tristeza
a comadre secou as lágrimas
no ombro d'outro homem

*

em família

líria porto

cinzas ou ossos
(por mim tanto faz)
quando chegar a hora
joguem em qualquer lugar
ou façam sabão

*

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

piedosa

líria porto

a lua no céu
o seu manto de neblina
mulher de mantilha

*

cela

líria porto

neste mesmo corpo
eu já fui menina
mocinha
mulher feita
mas cedi lugar
(de boa vontade)
à septuagenária
que faz uso dele
como seu abrigo

(qualquer hora apeio)

*

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ovelha

líria porto

tosaram-me a lã
e agora
sem meias melenas
torro os miolos
e espero
o capim crescer

*

terça-feira, 24 de novembro de 2015

haicai

líria porto

cheiro de alho frito
nas grimpas do mamoeiro
duas cotovias

*

artesanal

líria porto

desencaroçar as letras
desfiar bem as palavras
e depois tecer o verso
:
malha fina

*

ovelha

líria porto

tosaram-me a lã
e agora
sem meias melenas
torro os miolos
e espero
o capim crescer

*

sábado, 21 de novembro de 2015

conservadores

líria porto

o mofo sobre o telhados do casarão
talvez reflita o que vai pela cabeça dos proprietários
essa gente que conserva teias de aranha e poeira
no sótão e no porão das ideias

*

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

mudança de hábito

líria porto

o véu branco
o manto escuro
o celular no ouvido
a freira olvidou cristo
ou o céu ficou moderno?

*

o crime

líria porto

cadê o rio que tava aqui? a samarco bebeu
cadê a samarco? foi pro mato
cadê o mato? a samarco comeu
cadê a samarco? foi ao povoado
cadê o povoado? a samarco engoliu
cadê a samarco? foi matar peixe
cadê o peixe? a samarco matou
cadê a samarco? tá na lama
cadê a lama?
:
tá por aí
por aí
por aí

*

a sorrateira

líria porto

sempre a rondar os viventes
e de repente ela zás
cata um
leva consigo
pra terra do nunca mais

*

persona

líria porto

aqui ali não sei onde
busco palavras pros versos
não as encontro espero
espero espero
espero-las

*

o capitalista

líria porto

não era louco
era mau

trocava a vida
por lucro

não a sua
a dos outros

e punha tudo no bolso
aquele desgraçado

*

cataplasma

líria porto

pus a compressa sem pressa
o furúnculo veio a furo – o vulcão soltou a lava
aquela baba
:
que alívio

*

terça-feira, 17 de novembro de 2015

extremos

líria porto

por amor
deu a roupa do corpo
tornou-se subalterna
pensou que era amor
e não era
:
por desamor
tornou-se uma megera

*

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

bastilha

líria porto

vós paris um mundo vil
não podeis mais renegá-lo
ristes dos pobres
dos humildes
e sentis nos próprios calos
o peso dos vossos pés
e dos vossos passos

*

aprendizado

líria porto

tem coisa que a vida nos ensina
tucano é ave de rapina

*

logro

líria porto

três blefes regem as guerras
e o homem cai como pato –– barras de ouro
de terra e também barras
de saia

*

amolação

líria porto

tem gente que não vive sem polêmica
tem gente que não vive sem picuinha
tem gente muito chata
insistente
igual motorzinho de dentista

*

dinheiro

líria porto

tal como água
uns bebem demais
outros passam sede

*

sábado, 14 de novembro de 2015

banguela

líria porto

o que salvou daquele dente
só a raiz
:
e sobre ela replantou
um que sorri

*

gatilho

líria porto

pariste a treva
não te atrevas a entrever
com teus olhos de través
toda a nossa miséria
:
pode ser o estopim

*

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

ilusões

líria porto

andei
atrás
do impossível

feri
os pés
com cavacos

sangrei
até
esvair-me

deixei
no chão
os vestígios

dos sonhos
despedaçados

*

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

sujeira

líria porto

santa máquina maria
lava roupa muito bem
não exige quase nada
sabão água amaciante
pouquíssima energia
nenhuma manutenção

*

previsão do tempo

líria porto

brisa para as crianças
para os velhos
                 vendaval

*

omissos

líria porto

os que não estão
nem pró nem contra
são a favor

*

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

abalo

líria porto

a terra deu de tremer
não antes – depois
de revolta e dor

*

terça-feira, 10 de novembro de 2015

das mediocridades

líria porto

um rio de lama –– sujeira tóxica
(crime inafiançável)
e a gente a fazer conta da poeira nos móveis
das manchinhas no lençol

*

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

flash

líria porto

poesia é susto é espanto
sequer existe um propósito

*

domingo, 8 de novembro de 2015

ordem de despejo

líria porto

nascido com ele crescido com ele
o velho rejeita o corpo estranho

*

raios me partam

líria porto

a nuvem esbarrou na nuvem
ouviu-se o maior trovão

pareceu coisa maciça
pedra que virou brita

arrufos do vapor

*

mãos à obra

líria porto

para o projeto eu já tenho
um caderno cor de terra
(vindo de rio claro)
a estrofe de lápis verdes
e versos represados

eu vou fazer um bom livro
mesmo que demore
(assim eu adio a morte)
deixá-lo pra maricota
deixá-lo para o francisco

*

mariana

líria porto

quem lava o estouro da lama
quem ressuscita os mortos
quem purifica o chão
quem desenterra a esperança
quem seca as lágrimas
:
quem paga?

*

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

descalços

líria porto

tapete vermelho
lava incandescente
bolhas nos pés afeitos
às derrotas
:
sol nos olhos – cegueira – e no pódio
os sadomasoquistas

*

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

poda

líria porto

vou podar tuas ramas
assim tu
tão mimada tão rebelde
tão parecida comigo
não derramarás sobre mim
tuas vontades
tuas manhas

*

inflável

líria porto

a bola rola pra lá
pra cá
parece brincar sozinha
será o vento algum anjo
alguma alma penada
um fantasminha?

*

ah é?

líria porto

perguntas tolas nocauteiam a conversa
perguntas sábias revigoram-na – mesmo que não tenhamos
as respostas

*

treta

líria porto

chamava as concorrentes de bodinhas
ela própria uma cabra velha do rebanho
do coronel

*

a cabrita

líria porto

pasto teus bigodes e espero sinceramente
que a tua dona não se incomode

*

terça-feira, 3 de novembro de 2015

água com açúcar e uma gota de fel

líria porto

conheci-o em novembro
em dezembro mandou flores
mas eu tinha compromisso
com outro homem

trocamos cartas bilhetes
durante meses e meses
espalhou-se o nosso amor
como hera na parede

durante o chove não molha
apareceu julieta
foi assim que aconteceu
o romance do milênio

*

ao poeta

líria porto

quando eu me flor
despetala-me
guarda-me dentro do livro
e eu me seque às palavras
que me escreveste
e que li

*

lágrimas de crocodilo

líria porto

de que lhe adiantam
o caixão de luxo as coroas de flores
a música póstuma
se jamais lhe fizeste serenatas
enviaste-lhe bombons ou buquês
de rosas

(só se foi para aliviar
a culpa)

*

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

titia

líria porto

um grande peso nas coxas
nos braços glúteos e mamas
tudo aumenta no tempo
só a memória descamba

(nem lhe falem de ginástica
no máximo a caminhada
em torno do quarteirão)

*

centelha

líria porto

alinhei-me pela esquerda
primeira letra do verso
jamais em cima do muro
melhor margear o abismo
que rolar para a direita
silenciar-me omitir-me
ou bater panelas

*

(sem) escolha

líria porto

eu que não tenho
certeza de nada
afirmo com segurança
ainda neste século
seremos cinzas
ou ossos

o que preferes
cemitério ou crematório?

*

domingo, 1 de novembro de 2015

cremação

líria porto

façam sabão co'as as cinzas
lavem chão lençóis fronhas
que o corpo não exista em vãos
limpe a sujeira que fez

*

sábado, 31 de outubro de 2015

sem rococó sem floreio

líria porto

não pode ter erro
no direito nem no avesso
:
simples é mais difícil

*

da casa

líria porto

a morada com dois gatos
e o corrimão da escada

nas janelas cor-de-rosa
posso debruçar os sonhos

entro e saio
                 sem rapapés

*

contribuição

líria porto

o chão seria um tapete
se dependesse do ipê

mesmo com espinhos
a rosa espalha beleza

a água da chuva
pinta o pasto de verde

o que podemos fazer
pelo nosso planeta?

*

ambiental

líria porto

o mundo
do jeito que está
foi dos dinossauros
será das baratas

*


sexta-feira, 30 de outubro de 2015

o professor j.

líria porto

miúdo pequena estatura
puritano católico fiel
casado com dona g.
na copa do mundo do méxico
debaixo de um poncho e um sombrero
perdeu o rumo

no retorno para casa
tirou o terno a gravata
vestiu jeans e camiseta
largou dona g. dois meninos
cantou todas as mulheres
até nós – suas alunas

(nunca mais foi à igreja)

*

gula

líria porto

compro queijo
na casa da rapadura
depois eu faço o melado
ponho num prato fundo
e me mato

(mineiro da gema)

*

indócil

líria porto

montei a vida em pelo
sem arreio sem esporas
levei uns tombos
quebrei uns ossos
e aprendi que às vezes
é ela que impõe cabresto
que faz uso do chicote

*

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

(in)visibilidade

líria porto

segunda filha
sumida entre os demais
fez da vida o que bem quis
foi anjo e foi demônio
bailarina puta
atriz

*

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

nascimento

líria porto

chegou a hora
a lua virou
viva a maria
seja boa e bela
a sua passagem
pelo planeta

maria
a sobrinha-neta
tantas são as bênçãos
tantos são os olhos
à sua volta

*

vocabular

líria porto

nem flor na lapela
nem espinho na goela
palavra é expressão
significância
:
palavra é silvo
e é rosnado

*

inspiração

líria porto

dorme acorda
a folha branca nem pisca
mantém-se alerta à espera
dos novos versos

*

do barro

líria porto

cada homem
uma legião de anjos
e demônios

(ninguém é santo)

*

diariamente

líria porto

a rotina
ela não dá trégua
monta-me o lombo
e com o chicote
com suas esporas
fere-me o couro
força meu galope
enquanto choro
dentro da treva

(arre égua
viver é sempre
às cegas)

*

terça-feira, 27 de outubro de 2015

empáfia

líria porto

nada que alguém fizesse
tu ou eu –– qualquer pessoa
teria valor para ele
sequer olhava não via
achava-se o bom
o melhor
o rei da cocada

(o cocô)

*

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

estratégia

líria porto

à torcida organizada
que vibra pelo seu time
vou sugerir uniforme
melhor vestir-se de nada
e assim quase invisível
olhares fixos na bola
enviar as energias
pra marcar um gol de placa
surpreender o impossível

*

traumas

líria porto

tantas as cicatrizes
não apenas as da pele
as outras as indeléveis
as lesões em nosso espírito

*

o especialista

líria porto

a mulher do meu amante
tem boa pele
belo sorriso
ele faz com ela o que faz comigo
ela nem se importa
não é egoísta

conosco é amor e paz
) corpo não tem cerca (

*

fora do padrão

líria porto

usara barba bigodes
raspara-os depois de anos
e os seus netos menores
não foram para o seu colo
tiveram medo do estranho

(vovó ficou uma arara)

*

domingo, 25 de outubro de 2015

do perdão

líria porto

palavras o vento leva
palavras o vento traz
as más a gente releva
:
das boas fazemos velas
acendemo-las ao diabo

*

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

o canal

líria porto

a boca aberta
ela cutuca-o
dá agulhadas
mata meu dente

ai que vontade
morder-lhe o dedo
falar palavras
dessas de ofensa

porém a moça
tão educada
faz seu trabalho
com competência

*

modorra

líria porto

atrasaram os relógios
surrupiaram a fatia
mais gostosa
do meu dia
:
a recheada com sonhos

*

de mal a pior

líria porto

cheiro de chuva
alarme falso
gotas minúsculas
poucas – esparsas
viram fumaça
sobre o asfalto
:
o inferno é aqui?

*

demoras

líria porto

espero sentada
preferia uma cama
posição confortável
embora admita
sentada é melhor
que a fila de ônibus
da periferia

*

terça-feira, 20 de outubro de 2015

preocupação

líria porto

a triturar-nos o coração o cérebro
mantê-los sob pressão causar-nos desassossego
qual mão de ferro

*

algazarra

líria porto

nem bem o sol nasce
fuzuê de maritacas
muito blá blá blá

*

benemérita

líria porto

por amar a humanidade
entregou-se a homens
e mulheres
:
abriu-lhes as portas 
as janelas os braços
as pernas

*

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

perfeccionista

líria porto

o vento varreu o azul
não ficou uma nuvenzinha
pra contar o que era chuva

*

a colina a coluna

líria porto

subi subi fui ao topo
agora enfrento a encosta
desço-a em passos miúdos

na mala as pedras e a bengala
minha terceira perna

*

sábado, 17 de outubro de 2015

a invenção da noite

líria porto

quem raspou o azul as nuvens
guardou o sol na gaveta

deu duas demãos no escuro
pendurou lua e estrelas

replantou postes nas ruas
acendeu todas as luzes

distraiu nosso cansaço
fez dormir nossa tristeza

*

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

pulmonar

líria porto

querer não quer
necessita
bem sabe que lhe faz mal
(fumaça filha da puta)
então pergunto o que é isso
fraqueza vício
mania
ou só instinto suicida?

*

estio

líria porto

sem a proteção da nuvem
o sol fura a atmosfera
o chão seca
o fogo queima a floresta
e o rio morre
de sede

*

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

alimento

líria porto

felicidade inclui comida e poesia
para mitigar a fome do corpo
e do espírito

*

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

cobre

líria porto

mesma fórmula para todos
fez-se assim a massa humana

uns pularam do esquadro
para encontrar sua forma

forjei-me numa bigorna
uma pancada após outra

*

terça-feira, 6 de outubro de 2015

proparoxítona

líria porto

grávida de letras
tem acento agudo
minha predileta
:
paralelepípedo

*

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

desnorteio

líria porto

muita vez flutuo
vou voar co'os pássaros
tropeço na nuvem
despenco em teus braços

muita vez afundo
vou dormir co'os peixes
acordo a teu lado
um anzol no peito

muita vez caminho
rumo ao horizonte
encontro contigo
debaixo da ponte

muita vez eu rolo
caio no abismo
cabeça na pedra
onde o meu juízo?

*

implacáveis

líria porto

o pai general
a mãe sargento
os meninos soldados rasos
treinados para (in)continências
e funções menores

*

domingo, 4 de outubro de 2015

ilusão de ótica

líria porto

aos setenta anos
ultrapassadas as bordas
a pele não nos contém
despencamos sobre os ossos
necessitamos escoras
a memória tem espasmos
os olhos ficam aquém
porém velhos são os outros
aqueles que já sopraram
oitenta noventa velas
e perderam o fôlego

(não me tratem por idosa
não empurrem meu tempo
co'a barriga)

*

sábado, 3 de outubro de 2015

das variações do mesmo

líria porto

o meu bem
é o maior sossego
quando está na rede

porém o meu bem
ele se esmera
em caras de fera
quando arranja emprego
:
volto pro batente
o amor é cego

*

prenúncio

líria porto

nuvens carregadas
trazem no seu bojo
também novo alento
promessa de chuva
de boa colheita
de que a poeira
o calor a sede
ir-se-ão em breve

*

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

cúmulo

líria porto

pandora
a primeira mulher
tinha mania de caixas caixinhas estojos gavetas armários estantes
roupas sapatos livros revistas relógios jornais brincos
(objetos de toda espécie)
e mantinha tudo tão arrumadinho que nem parecia acumular coisas
o que a impedia de abrir portas e janelas
:
saía de casa pela chaminé
e um dia virou fumaça

*

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

no meio da noite

líria porto

palavras antigas me puxam o pé
(quiprocó chapoletada fuzarca
chumbrega supimpa marmota
carraspana ceroula sirigaita
safanão)
:
palavras mais moças
pegam-me pela mão

*

o chefe

líria porto

poderia ser cozido assado
até mesmo frito ou no vapor
para quê ater-nos a um só modo
se há mil maneiras de fazê-lo
e variados gostos?

(prefiro-o ao espeto
nas profundas do inferno)

*

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

a ampulheta

líria porto

a cada dia
um dia
até que um dia
a gente acaba

(e tudo começou naquela noite)

*

bolo de velha

líria porto

sempre outubro
e em pouco
septuagenária
cada dia mais perto
cada dia mais frágil

não me preocupo
nem me preparo
ninguém foge
antes da hora
apenas submerge

*

a plantação

líria porto

um por um
com raiz e tudo
dentes unhas cílios
fios de cabelo
curiosidades
medos

*

terça-feira, 29 de setembro de 2015

enfrentamento

líria porto

olho no olho – de cegar
qual fosse o sol
ela a terra
:
continua em sua órbita
a impor limites

*

a alma do negócio

líria porto

lava esfrega torce 
perfuma
deixa a roupa sequinha 
um luxo
faz por mim 
o que eu não faria
:
a minha electrolux
porta frontal

*

roça

líria porto

como fossem catapora
na pele do céu 
as estrelas

*

a farra

líria porto

iguais patinhos no lago
os meninos na piscina
quá quá quá – tantas risadas
brincar é mais que existir

*

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

a prole

líria porto

crianças como andorinhas
revoam no nosso entorno
ficamos tontos lembramos
do tanto que também fomos

*

desembarque

líria porto

invento o mar
um navio
tua volta para casa
invento o cais
uma praia
um rio que te deságua
entre as montanhas
de mim

*

total

líria porto

a lua veio com tudo
saia rodada de renda
contudo a terra
ciumenta
quis ofuscar o seu brilho
meteu-se na sua frente
ocasionou um eclipse

*

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

pega

líria porto

pica-pau batia o bico
na beira da minha cama
xô pica-pau não faz isso
papai pode não gostar
:
ah que bobagem
tu gostas? gosto
isso é o que mais importa
deixa o papai pra lá

*

um menino

líria porto

não conheceu as irmãs
ninguém ouviu o seu choro
à saída do hospital
entregaram-no aos pais
em caixa de papelão
:
ele e uma flor

*

pão e vinho

líria porto

eu sou minha tu és teu
e de nós dois – só o brinde

*

andorinha

líria porto

nas horas de voo
ela faz escala
na minha janela

pousa na beirada
bebe um pouco d'água
e voa de novo
:
corta a paisagem
asas de tesoura

*

joaninha

líria porto

menina tão chique
roupinha vermelha
cheia de bolinhas

caminha com pressa
que essa vida é breve
procura uma flor

algum girassol
a rosa amarela
u'a margarida
:
é primavera

*

terça-feira, 22 de setembro de 2015

vário

líria porto

fazes assim faço assado
e não esperes de mim
que eu seja o teu
reflexo

*

uma hora tudo acaba

líria porto

passou anos consumida
numa vida tão amarga
que a vida deu-lhe
um suspiro
:
o último

*

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

nem tanto

líria porto

passarinho me rodeia
pede casa pede alpiste
ponho água na janela
um punhado de comida
permito que me visite
mas gaiola não lhe dou
faça ninho numa galha
eu já tenho uma família
e não quero outra

*

bipartido

líria porto

fura-olho fingido
traíra
(tudo a mesma coisa)
às vezes dá dois beijinhos
e cospe em nossa orelha
seu veneno de víbora
:
quem fala mal de um e outro
difama a todos –– inclusive a mim
e a ti

*

censura

líria porto

de terno e gravata
o sem-vergonha de sempre

índio caminha nu
e nunca foi indecente

*

onda

líria porto

o mar avança
depois recua
nessa incerteza
a maré enche
e se esvazia
:
conforme a lua

*

noz

líria porto

come a castanha
quem rompe o lacre
da virgem

*

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

(peguei o sol no pulo) a fortuna

líria porto

nem mais nem menos
o tanto
para suprir a família
pagar as contas
mandar os filhos à escola
os uniformes os livros
a festa de são joão
e no natal
a ceia com rabanadas
castanhas
lembrancinhas pras crianças
um vestido pra mamãe
sapatos novos
:
meu pai –– riquíssimo
com seu cigarro de palha
no balcão do armazém
de sol a sol

*

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

o tempo não tem tampa

líria porto

a lua é tão velha tão velhinha
que vovó era menina
e a lua já existia

*

inseparáveis

líria porto

a sombra cresce conosco
encolhe-se ao meio-dia

para encará-la nos olhos
só de costas para o sol

(qualquer dia crio asas
deixo a sombra para trás)

*

trabalho forçado

líria porto

tem cupim dentro do pau
vasilhas sujas na pia
o varal arrebentou
faz dias não varro a casa
a geladeira vazia
(levas de refugiados
mortes em alto mar
desespero violência
acusações e golpistas
a direita não dá trégua)
poesia nem me digas
estou sem prazo
pro verso

*

terça-feira, 15 de setembro de 2015

êxodo

líria porto

pertences conquistas
deixar tudo e seguir
olhos no horizonte
rumo ao desconhecido
(manter vivo o sonho)

só a existência
corre riscos

*

fogo-fátuo

líria porto

ao exilar-me de mim
mudar de dentro da pele
não fazer nenhum esforço
nem pra rir nem pra chorar
não sentir mais dor alguma
saudade tristeza alegria
tornar-me uma entrelinha
dormirei o sono justo

*

provedor

líria porto

teu corpo – meu oásis
matava-me a fome a sede
repunha minha energia

eu vivia pedra e areia
eras o que eu tinha

*

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

autômato

líria porto

inspiro expiro caminho
e como e bebo e bocejo
ligado no automático
a vida pasta
não vejo

*

acusação

líria porto

tirem o cavalinho da chuva
eu tu ele nós vós eles – vocês
ninguém passará incólume
menos ainda quem julga

*

domingo, 13 de setembro de 2015

nau frágil

líria porto

nossas crias batem asas
sentimo-nos pequeninos
:
saudade pesa igual chumbo
o nosso barco sem rumo

*

sábado, 12 de setembro de 2015

santinha

líria porto

fosses o osso
o cachorro não te largava
rosnava com todos
vacilava ao trocar-te
por carne

*

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

inveja

líria porto

tem uma rolinha
arrulhando e fazendo ninho
na minha janela
:
e eu sem passarinho

*

terça-feira, 8 de setembro de 2015

equação

líria porto

todas as mães
tão múltiplas de si
tão divididas

*

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

neuroses

líria porto

enrolo-me enrolas-te
enrolamo-nos
e neste embaraço
algozes somos nós
tão desumanos

*

rodeio

líria porto

rastilhos de pólvora
passam rente ao povo

gritaria estrondo
o chão estremece

não sei se alegria
ou se desespero

desse homem pobre
sem terra e sem gado

que se agarra à festa
por ser boiadeiro

*

domingo, 6 de setembro de 2015

no fígado

líria porto

quem vai na onda é surfista
a minha pista é a verdade
e não existe só uma

as verdades são murchas
demoro a analisá-las
não sou leviana

(nem da mídia)

*

cova

líria porto

máscaras mágoas ressentimentos
tudo na mesma vala
a sete palmos

(em vida
ervas daninhas)

*

sábado, 5 de setembro de 2015

puteiro

líria porto

que inveja das mulheres
dos seus bobes dos seus
robes
saltos altos
dos seus homens
da fumaça dos cigarros
do uísque
das noitadas
de tudo que não vivi

*

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

descabelada

líria porto

vovó quer que os cabelos cresçam
só para fazer um coque
eu não
vou é raspar a cabeça
passar máquina dois ou três
para pirraçar o vento
que me põe em maus lençóis

*

privacidade

líria porto


consigo
comigo

*

domingos e feriados

líria porto

dias inúteis
(na opinião do patrão)
dedico-os a meus filhos
reparo como cresceram
nos dias que trabalhei
de sol a sol

*

rapina

líria porto

quer a curva não o ângulo
por mais desdobrado que seja
que as retas o aborrecem
para as guinadas é lerdo
prefere ir lentamente
circular
asas abertas

(nem regurgita a carniça)

*

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

de pousos e voos

líria porto

fui pela sombra
e a sombra
sempre agarrada a meus pés
diluiu-se

esse assombro
que as borboletas conhecem
em sua vida tão breve
segue comigo

*

soberania

líria porto

sou uma espécie de rainha
sem súditos sem seguidores
sou a rainha de mim

*

renda de bilro

líria porto

milhares de bicos
um canto bem orquestrado

a prima vera capricha
pendura flores nas árvores

as cores são tão bonitas
não sei fazer destas mágicas

vou passear co'os meninos
andar juntos de mãos dadas

*

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

nuvem

líria porto

podes chover canivete
punhal espinho
o que flor
não deixes de chover chuva
um pouco para cada planta
um copo para cada bicho

(todos secos
e ávidos)

*

recônditos

líria porto

dentro – bem lá no fundo
debaixo de pedra ferro
e cimento
vontades secretas
desejos incômodos

(resíduos do inconsciente
de tudo que nos traduz)

não somos amenos

*

desembarque

líria porto

um dia uma hora
um minuto
mas não
o mar não veio
nem sua espuma

morro na areia
junto do cais

*

a musa

líria porto

não lhe importa o que a moça faça
se vai à missa se ama os beatles
se usa saias curtas meias soquete
tênis vidrilhos ou miçangas

só pensa na graça
dos seus seios
púberes

*

domingo, 30 de agosto de 2015

regresso

líria porto

eu estrelo – ele tucana
e bicudo não me beiça

(no frigir dos ovos)

*

a chance

líria porto

já não tenho tempo
pra matar o tempo

viver tem começo
tem meio e tem fim

no final da linha
onde eu me encontro

embarco num voo
ou pasto o capim

*

segredo

líria porto

da boca pra dentro
confusão barulho
da boca pra fora
sigilo

*

sábado, 29 de agosto de 2015

pano de chão

líria porto

o tempo faz-me uns furos
eu me cirzo com frequência
nem por isso tranquilizo-me
esgarço-me por fora
e por dentro

*

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

desconstrução

líria porto

tecer um manto leva tantos dias
desmanchar um manto
um piscar de olhos

*

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

origem

líria porto

na semente
mora a floresta

em nossos netos
a humanidade

*

guerrilha

líria porto

essa brancura de pele
é apenas acidente de percurso
podíamos ter outra cor
outra textura
nada disso nos faria diferentes
ser gente é questão de postura

*

ilícitos

líria porto

soube-se
de fonte limpa
que se locupletam aqueles
que usam métodos
sujos

*

na biblioteca

líria porto

nada como um dia atrás das ostras
e das pérolas

*

do espetáculo

líria porto

sigo sem pique para tanta coisa
tenho estado triste e muito cansada
subo a ladeira até a metade
e depois despenco como fosse
um caco

nessas alturas saltar obstáculos
tão grande o esforço que me leva a nada
pressinto que paro a qualquer momento
fecho a cortina e abandono
o palco

*

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

gatilho

líria porto

aos que abominam a velhice
a vida oferece uma chance
a morte prematura

ninguém segura o tempo
a tempestade
o vento

*

terça-feira, 25 de agosto de 2015

febre

líria porto

da ponta do cabelo
à sola do pé
o arrepio

doido
doído

*

sentença

líria porto

em 1945
fui condenada
à vida

para cumprir pena
ganhei asas

(no corpo
um bolo
de setenta
velhas
:
todas de pavio
curto)

*

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

maioria

líria porto

tem tanta estrela no céu
tem tanta estrela no mar
tanta estrela no planeta
mais que tucano
e urubu

*

reza

líria porto

o pão nosso –– pão francês
dai-nos hoje com manteiga
não com margarina

*

domingo, 23 de agosto de 2015

legítima defesa

líria porto

em qualquer lugar do mundo
onde te visse saberia – perder-me-ia
de mim

a carne é faca

*

debaixo

líria porto

excluímos da nossa vida
o ex-amor o ex-amigo
porém à noite
num sonho
sentam-se à nossa mesa
servimos-lhes pão e vinho
e todos os sentimentos
que havíamos banido
estão lá
ainda queimam
:
brasas cobertas de cinza

*

vizinhos

líria porto

o futuro é logo ali
no próximo minuto
:
e não existem distâncias
toda lonjura é perto

*

face

líria porto

a beleza não carece muito
faz-se de jeito simples

*

das convicções

líria porto

não fica em cima do muro
ou está dentro ou está fora

se dentro mergulha fundo
se fora não participa

há causas que não aprova
não sabe fazer intriga

atear fogo no circo

*

maciço

líria porto

no dia da despedida
o abraço maior do mundo
entraste pelos meus poros
formamos u'a massa única
metade de nós foi embora
a outra ficou em mim

*

sábado, 22 de agosto de 2015

versos noturnos

líria porto

não vou me deixar morrer
por um sonho arruinado
nem sempre nossos anseios
correspondem à realidade
melhor arregaçar as mangas
e continuar

*

o mentiroso

líria porto

nem co'a boca na botija
e provas que o acusam
admite a falcatrua

põe uma cruz sobre o peito
faz cara de cu pra dizer –– não fiz mal algum
ao trono não renuncio

(e que tudo o mais se foda)

*

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

plasta

líria porto

tinha sangue de barata
a mosca-morta

*

jardim da infância

líria porto

pátio do colégio
criançada de uniforme
bando de andorinhas

arrulhos brinquedos
alegria que floresce
risos que borbulham

*

mamãe

líria porto

eu te amo
mas não sem conflito
quando dás um grito
ou me ameaças
eu sinto vontade
de fugir de casa

quando eu crescer
e fores velhinha
como a vovó
vais morar comigo
e não num asilo
não te abandono

então eu te digo - fica calma mãe
vou ser um bom homem

*

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

das emoções

líria porto

o amor é discreto
raramente atravessa as paredes
o piso o teto ou vai à janela gritar
:
o ódio é que faz escândalo

*

partícula

líria porto

eu é tão pouco
a_penas grão de areia
e deserto

eu é quase nada
e ao mesmo tempo
é oásis

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) desejos mínimos

líria porto

o que eu quis e quero
não é ser bailarina do moulin rouge
nem dançar um tango em buenos aires
o que mais desejo é dançar bolero
com um cafajeste
                        num motel da estrada

*

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

sequestro

líria porto

o vento me empurra
(que amante rude)
arranha-me a pele
embola meus pelos
e nem se desculpa

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) sem rima nem métrica

líria porto

eu tenho a boca suja mas mãos limpas
mando à puta que pariu fico com raiva
reconheço que errei peço desculpas
o que tenho a dizer digo na cara

eu não conto os segredos do ex-amigo
não deduro companheiro nem a pau
e nem julgo o que fez os seus motivos
cada qual sabe de si e ninguém mais

falo não falo talvez e falo sim
faço silêncio se preciso preservá-lo
quero distância é dos donos da verdade

eu não temo a solidão – prefiro assim
a caminhar na caravana dos fingidos
dos que sorriem e nos furam com punhal

*

sábado, 15 de agosto de 2015

chave de braço

líria porto

para o pai era atrevida
para o marido mandona
o avô achava-a
um amor
;
trata-nos como rebeldes
quem nos quer domesticar
calar-nos a boca

*

pitbulls

líria porto

nem havia cercas
depois fincaram estacas
esticaram arames
levantaram muretas
muros altos
puseram cacos de vidro
passaram fios elétricos
e por último
os rolos de aço
pontiagudo
:
ninguém mais
dá bom-dia

*

passaredo

líria porto

os ninhos acordam
piu firifiu fiu fiu fiu
a sinfonia

*

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

madeira de lei

líria porto

foi-se
não sem resistência
teimava em viver
amava mais a vida
do que amou a mim
ou outra pessoa

*

descompasso

líria porto

o bicho-homem
sedento faminto
ávido por lucro
nem mastiga
devora tudo

a natureza
o seu ritmo
gasta séculos
para recompor
os recursos

(a noite se aproxima)

*

perdulários

líria porto

quem atira pérolas aos porcos
ainda vai usar colar
de pipoca

*

margaridas

líria porto

singelas
sem perfume
embelezam campos
praças ruas becos
casas casebres
e avenidas
:
florescer é um ato heroico

*

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

bicho-do-mato

líria porto
o lugar que moro –– rente a quase tudo
um furo na terra para onde rolo
e fujo do perigo
(sou o tatu-bola)

*

o outro lado da moenda

líria porto

quem procura
pode achar um furo
em qualquer postura

quadrados e cúbicos – prefiro
os redondos

*

terça-feira, 11 de agosto de 2015

varredura

líria porto

soltam-se as folhas
curvam-se as cerdas
formam-se bolhas
nas mãos das servas

vassouras varrem
o vento suja
o vento não sabe
quanto lhes custa

*

malcriada

líria porto

desafiar a censura
dar banana à opressão
dizer não se esperam sim
e quando precisar
um palavrão

(as rimas em ão são mais brutas)

*

(meta)morfose

líria porto

o feto
o bebê o menino
o moço o adulto o velho
o defunto
:
todos num corpo só
da entrada à saída do mundo

*

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

o mundo

líria porto

descartável fictício virtual
não mais olhos nos olhos
encontros de família

a convivência?
nas redes sociais

a lua?
uma fotografia

*

nutricionistas

líria porto

não nasci ontem
sou de outro século
do tempo que a gente
não precisava de gotinhas
de vitamina d
nem usava complemento
vitamínico

tem sol lá fora
feijão milho laranja e banana no pé
:
chão é laboratório

*

domingo, 9 de agosto de 2015

dom juan

líria porto

faz tempo que não te beijo
mas não me esqueço do cheiro
do jeito que me abraçavas
horas inteiras no leito
de algum lugar

o despertar apressado
cada qual pra sua casa
pra não levantar suspeita
e tanta coisa era feita
debaixo do acolchoado

*

sábado, 8 de agosto de 2015

impenetráveis

líria porto

pedra é pedra
até certo ponto
depois vira piso
teto alicerce lápide
muro
estátua imagem
facínora

*

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

periféricos

líria porto

os dedos formigam
e assim
dormentes
não sentem nas pontas
as teclas que insistem
em versos capengas
tão mal empilhados
sem sumo e sem cepa
quais fossem um punhado
de cacos de vidro
ou areia

*

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

interpretação

líria porto

poder eu posso não sei se devo
as circunstâncias são favoráveis
penso nas consequências
:
a vida cobra – é cascavel

*

drible

líria porto

em caso de pesadelo
trocar de cama e manter
a luz acesa

monstros são formigas
desbaratada a trilha
eles não retornam

*

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

nascimento

líria porto

a urgência o sexo
trinta e seis semanas
e a vida a jorrar
entre as pernas

*

cascatas

líria porto

as águas
a correnteza
o penhasco
o salto
o véu da noiva
a pedra
o rompimento do hímen
;
já não existem
donzelas

*

difícil

líria porto

mas dentro da casca grossa
pode haver sabor incrível – vide
o abacaxi

*

terça-feira, 4 de agosto de 2015

caudaloso

líria porto

meu amor nasceu na serra
fez a curva deu a volta
tropeçou na pedra
transbordou
não encolheu seu destino
:
morreu no mar
como um rio

*

ponto

líria porto

comboio de dúvidas de ansiedades
tombamento no meio
da página

*

maria fumaça

líria porto

nos mesmos trilhos
enquanto vou ela vem
é certo –– na hora certa
a gente bate de frente
:
a morte e eu

*

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

reincidência

líria porto

vez em quando vez em sempre
vez por outra menos mais
saberei com qual frequência
dir-te-ei nunca
jamais

*

satélite

líria porto

no universo da pele
o maior órgão do corpo
a sensação que me impele
a girar no seu entorno

*

desacordo

líria porto

eu sou a minha patroa
boa para mandar –– péssima
para obedecer

*

de verdade

líria porto

amélia
é que era
mulher
deserdada

*

santo

líria porto

dai-me algum sonho
um chá pelo menos
uma farda prateada
um padrinho
algo que me aproxime
do vosso deus

*

resgate

líria porto

sinto saudades tuas
mesmo se estás do lado
amo-te por nós duas
água do mesmo pote
farinha do mesmo pão
terra do mesmo barro

*

domingo, 2 de agosto de 2015

(peguei o sol no pulo) amargura

líria porto

como falar de flor
se hoje estou um espinho


*

demora

líria porto

quem espero
não me alcança

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) sedução

líria porto

tem homem que me deixa tonta
o garçom por exemplo

*

sábado, 1 de agosto de 2015

a namorada do papai

líria porto

sem louros medalha
com a calma das trepadeiras
:
a pele sempre boa

*

a casa

líria porto

a passarada acorda
todos abrem o bico
pai mãe filho vizinhança
ninguém se entende

voa um pra cada lado
a árvore em silêncio

*

aposentado

líria porto

palavras cruzadas
a mesma letra a servir a outras tantas
verticais horizontais
e o velho a queimar tutano

*

quando eu morrer vou virar entrelinha

sexta-feira, 31 de julho de 2015

pauta

líria porto

mim bemol
si sustenido
no rol
das lembranças
tardias
das claves
de sol
e de lua

*

novos e velhos

líria porto

os sapatos
que transportam
nossos passos
a lugares
conhecidos
também erram
os caminhos
e nos jogam
no buraco
:
os chinelos
são mais íntimos

*

entraves

líria porto

no máximo
com muita vontade e empenho
e não sem dificuldades
modificamos os hábitos
mudamos-nos
mas não do vinho
pra água

*

quinta-feira, 30 de julho de 2015

incompatibilidade

líria porto

a lua feita a compasso
qual hóstia na eucaristia
ela chega triunfal
o sol se esvai

(o céu é pequeno)

*

esquadro

líria porto

ninguém segura o tempo
o vento a tempestade
nem detém a meninice

não deixem para mais tarde
caminhar de mãos dadas
sentir crescerem
os guris

*

novos e velhos

líria porto

os sapatos
as sandálias
que transportam
nossos passos
a lugares
conhecidos
também erram
os caminhos
apertam-nos
os calcanhares
escorregam
e nos jogam
no buraco
:
os chinelos
são mais íntimos

*

quarta-feira, 29 de julho de 2015

filho

líria porto

se não posso compartir sofrimentos
é porque não confias e é isso que dói
e magoa
:
não me poupes sou mais forte
do que pensas

*

arautos

líria porto

o galo canta
acaba de nascer
um dia novo

a passarada
em grande algazarra
comemora

(quem quiser
faça o café
amélia dorme)

*

nós

líria porto

mais que vínculos de sangue
os laços da amizade 

*

volta por cima

líria porto

em mim me ancoro
quando desabo
levo-me junto
arrasto tudo
depois levanto-me
volto em meu colo
e me consolo
e me ajudo
pois sem eu mesma
eu não seria
mais que uma lesma
ou parasita

*

terça-feira, 21 de julho de 2015

associações

líria porto

a curva da lua
a curva da rua
a curva do rio
a curva do cio
a curva do seio
a curva da bunda
a curva da curva
o cu

*

ocos

líria porto

eu te espero não vens
tu me esperas não chego
entre nós existe um vão
que nada preenche

*

segunda-feira, 20 de julho de 2015

invasor

líria porto

plutão era um cão tranquilo quieto no seu canto
depois que americano enfiou-lhe a sonda
perdeu o sossego

*

acolhimento

líria porto

os braços de morfeu
a cama boa os sonhos
a noite fria

(pisei a lua)

*

sábado, 18 de julho de 2015

ioiô

líria porto

uma vez algumas vezes
insistimos não deu certo
:
por que puxar para perto
quem já nos fez
infelizes?

*

teatro

líria porto

catamos palavras
aqui e ali
algumas sensatas
as outras sem tino
com elas traçamos
as cenas os atos
as incongruências
do camarim

*

quinta-feira, 16 de julho de 2015

artísticos

líria porto

entre pelados e nus
há detalhes que os diferem
os pelados tiram tudo
os nus se vestem
de pele

*

teóricos

líria porto

conhecemos o belo
sabemos os modelos
não conseguimos mudar
o que temos

*

estrelado

líria porto

de vagar se vai aonde
vênus brilha mais que júpiter

*

mundana

líria porto

pendurava os pecados no varal
e voltava para a esquina
:
ia nua
alma limpa

*

l'amour à trois

líria porto

sussurro teu nome não acordes
vou penetrar o teu sonho
revestir tua pelve
:
agora desperta
chama a fêmea que dorme do lado
façamos sexo –– nós três

*

o velho

líria porto

o machismo continua
mas a austeridade
foi pro brejo

*

abusos

líria porto

o velho a levantar-lhe a saia
o tio a mostrar-lhe o pinto
e depois o enfermeiro
a deslizar os dedos
em sua coxa

(devia ter lhe contado
mas tinha medo do pai)

*

terça-feira, 14 de julho de 2015

boca suja

líria porto

pinto com todas as letras
o quadrado o cubículo
o buraco negro

*

coxinhas

líria porto

eu faço amor co'as palavras
com falastrão faço guerra
não tentem calar meu verso
não vivo de ocasião
e muito menos de merda

frangotes vão para o corte
eu que sou vaca
dou leite

*

artísticos

líria porto

entre pelados e nus
há detalhes que os diferem
os pelados tiram tudo
os nus se vestem
de pele

*

sábado, 11 de julho de 2015

das vergonhas

líria porto

lugar de timidez
não é no palco
é na coxia

*

do preconceito

líria porto

lá ia o negrinho
seu corpo franzino
tocava os pedais

corria corria
e era feliz
como todo menino

então a freada
o carro que cessa
a sua alegria
:
bicicleta roubada?
não senhor guarda
ganhei no natal
:
recolho o objeto
para averiguação

*

sacripantas

líria porto

às santas mulheres
que pensam indecências
receitam água-benta

(e molestam crianças
em nome de deus)

*

dom juanito

líria porto

joão-de-barro – bom de bico
adora arrastar a asa e cantar
as andorinhas

quando retorna à casa
(muita vez estropiado)
tem batom no colarinho

*

autoimunidade

líria porto

a dor que é tua
na primeira pessoa
a dor que é minha
não descrevo

*

sexta-feira, 10 de julho de 2015

fogaréu

líria porto

velho é igual mato seco
quando aparece uma chispa

*

quinta-feira, 9 de julho de 2015

miopia

líria porto

lunetas
binóculos
e agora esta lupa
tu me observas
procuras defeitos
se apenas me olhasses
verias todos
:
não uso disfarces

*

sem cobertor

líria porto

a lua lá
sozinha de fazer dó
na noite fria

*

morri muitas vezes

líria porto

havia uma índia
nuinha na selva
tal qual veio ao mundo
quiseram que a vestisse
tapasse-lhe as partes
(não o fiz)

depois nu'a mama
falava de câncer
e noutra um anjo
barroco criança
havia entre as pernas
um sininho

por fim o modelo
assim sem camisa
achava-o tão belo
sequer tinha sexo
chamava-o andrógino
acusaram-me
:
a morte sumária
quedei sem defesa

*

dedo-duro

líria porto

tomara encolha
tomara bolhas
pus e ferida
tomara latrina
seu habitat

*

estado interessante

líria porto

em cama larga
durmo do lado avesso
no outro deita um fantasma
que à meia-noite me come
engravida-me de sonhos
e pesadelos

acordo prenha
de espasmos

*

segunda-feira, 6 de julho de 2015

um poema para elza

líria porto

às vezes eu me evaporo
fujo pro fundo do quarto
deságuo enxurro empoço-me
nas portas da tua (c)alma

então enxugas meus olhos
dás-me da tua água-benta
e desse modo eu aguento
tanta mudança
:
eu sou criança de sorte

*

esgrima

líria porto

eu cismo com muita coisa
com uma ideia uma dúvida
só depois do entendimento
consigo embainhar
o sabre
:
tal como vaca
eu rumino

*

pontual

líria porto

espicha as horas
dribla o tempo
mente a idade
estica a cara
porém a morte
impossível
o seu relógio
não atrasa

*

domingo, 5 de julho de 2015

segunda-fera

líria porto

lá vem o sol
de_vagar

também pudera
é inverno

até o sol
tira folga

no arremedo
da aurora

*

sábado, 4 de julho de 2015

polígamo

líria porto

medalhinha de ouro
pendurada na corrente
debaixo dos panos
a segunda mulher

a caneta
no bolso da camisa
essa pode aparecer
a mãe dos seus filhos

*

motivo

líria porto

por isso não fui
(e fiz bem)
eu não quis vê-la contigo
e embora saiba que existe
mantenho a pose

(o que os olhos não veem
machuca menos
ilude-nos)

*

descomunal

líria porto

morre-se muitas vezes
de amor de medo de raiva
de saudade sono tédio
porém não existe remédio
pra morte por abandono

*

imputável

líria porto

eu sou só eu e mais nada
e não tenho costas largas

*

sexta-feira, 3 de julho de 2015

periferia

líria porto

se esta rua fosse minha eu capinava a calçada
pintava os paralelepípedos colocava postes lâmpadas
limpava a boca de lobo

se esta rua fosse minha
tinha água encanada coleta de lixo
esgoto

(se esta rua fosse minha
seria eu o prefeito)

*

manivela

líria porto

não sei com quem andas
por onde caminhas
só sei que nos vimos
voltaste no sonho
e como se o tempo
já nem existisse
cantavas sorrias
tal como no dia
que te conheci

(éramos meninos)

*

quinta-feira, 2 de julho de 2015

disputa

líria porto

corrida de folha seca
o vento dá a partida
tem folha que é tartaruga
tem folha que é borboleta

*

quarta-feira, 1 de julho de 2015

ponto e vírgula

líria porto

este ou aquela – nenhum
não ter também é escolha

não consumo desse item
nem maria vai com todos

*

terça-feira, 30 de junho de 2015

reavaliações

líria porto

tem hora que a vida não dá nem recebe
tem hora que a vida se fecha
para balanço

*

complementos

líria porto

a regarem a nossa sede
suprirem os vãos do corpo
o amor e o sexo

*

pesadelo

líria porto

sonho mau
tão real tão pavoroso
acordados ainda vemos
e sentimos sobre nós
as paredes derrubadas
pelos monstros

*

segunda-feira, 29 de junho de 2015

tablado

líria porto

corpo é o palco
onde a alma se apresenta

(mais dia menos dia
cerram-se as cortinas)

*

ímpeto

líria porto

esse homem tem um visgo
tem um imã – nem sei quê
quando a gente se aproxima
eu me jogo nos seus braços
mesmo que não queira
que abomine
mulheres oferecidas

*

domingo, 28 de junho de 2015

medi.dor

líria porto

aconselhou-me um poeta
meça bem suas palavras
desde então é o que tento
com minhas medidas rasas
às vezes sem cabimento

*

horta

líria porto

já fui borboleta
cheirei muita flor
que vida anêmica
:
agora virei lagarta
como couves

*

fogos de artifício

líria porto

depois de cada estrondo
muitos ao mesmo tempo
surgiam uns cometas
as luzes explodiam
choviam iguais cascatas
de gotas coloridas
azuis vermelhas
prata

(havia ouro dentro)

*

sábado, 27 de junho de 2015

temporal

líria porto

dentro de cada cabeça
tem uma massa cinzenta
e é vário o tom do cinza
que ameaça o sistema

*

o escambau

líria porto

as coisas são como são
misto de bem e de mal
e ninguém é santo

*

sexta-feira, 26 de junho de 2015

o portuga

líria porto

a foto do avô na sala
seus olhos fixos em mim
girava nas solas dos pés
tentava surpreendê-lo
achava-o outra vez atento
nem morto o avô dormia

*

quinta-feira, 25 de junho de 2015

reencontro

líria porto

nenhum de nós sabe
quem parte primeiro
então meu amor
qualquer um que for
fica à espera do outro
na porta do céu
ou do inferno

(afinal dá na mesma)

*

compensação

líria porto

para tanta lonjura
muita jura muito amor
vez por outra uma visita
abraçar pela cintura
fixar olho no olho

*

aprendizado

líria porto

ensinam-nos a relembrar
na arte de esquecer precisamos ser
autodidatas

*

necessidade

líria porto

detrás das lentes
olhos de pouco alcance

ninguém usa tal cangalha
sem precisão

*

minha sombra

líria porto

faço parelha com ela
boto a cangalha em seu dorso
seguimos nós dois às cegas
e juntos rodamos mundo
dos penhascos aos abismos
nas brumas do faz de conta

*

segunda-feira, 22 de junho de 2015

o carro de bois

líria porto

dois a dois
emparelhados
puxam carga
a roda range
êeeeh
a dureza range

*

ladrãozinho

líria porto

aqui ali acolá
o vento surrupia
terra areia pó
pétalas de flor
papéis sobre a mesa
punhados de folha

(rouba
e fica impune)

*

inteligência

líria porto

a natureza é espontânea
os ventos os rios o mar
as florestas as montanhas
os bichos

para o bem e para o mal
ou para tentar reverter
o que ela própria arruína
só uma espécie interfere
:
a nossa

*

domingo, 21 de junho de 2015

mascarados

líria porto

nós na madeira – teu nariz meu olho
caras de pau com cupim
e verniz

*

in-ver-nada

líria porto

o silêncio nos diz tudo
muito mais que as palavras
sem conteúdo

(tu não falas
eu no canto
ponho a viola
no saco)

é tempo de hibernação

*

sábado, 20 de junho de 2015

vocábulos

líria porto

palavras são seres vivos
que já nascem sabendo
seu próprio sentido

(nós é que as confundimos)

*

sentinela

líria porto

como a pedra
visível e impenetrável
ninguém sabe seu nome
como vive
se está triste ou alegre

será que pisca
tem coceira
solta pum?

*

o livro

líria porto

entre todas as vantagens
escrever pode ser fuga
viver a aventura dos outros
que perambulam nas páginas
da nossa própria vida

*

septuagenários

líria porto

para a frente
é lucro

o tempo se nos oferece
o presente –– dia a dia
passo a passo
:
mas porém

*

pitacos

líria porto

veio meter o bedelho
imiscuir-se
impor-me sua cartilha
passei o ferrolho na porta
não lho permiti
:
chama-me autoritário
quem quer mandar em mim

*

estranho

líria porto

carrega filhotes na bolsa
e não é canguru

não é pato
mas bota ovo
e tem bico chato

que mamífero mais esquisito
o ornitorrinco

*

quinta-feira, 18 de junho de 2015

a vida balança

líria porto

bebe água morna
rejeita guloseimas
trata das carências
doutra forma

(questão de peso
regime de guerra)

*

quarta-feira, 17 de junho de 2015

susto

líria porto

a pupila se dilata
o sangue some das veias
as mãos gelam
tremem as pernas
o grito fica na goela
o medo é um pesadelo

*

terça-feira, 16 de junho de 2015

no aniversário

líria porto

nem bolo nem vela
só um tanto de desgosto
recusava-se a ficar velha
e o tempo não perdoa

*

umidades

líria porto

nas tardes densas de muita nuvem
o céu despenca como as viúvas
e as samambaias

nascem as avencas

*

segunda-feira, 15 de junho de 2015

espirros

líria porto

borboletas abelhas
passarinhos
sou alérgica a grãos de pólen
socorro
corro perigo

*

curupira (1)

líria porto

estendo os braços
caminho para ti
e me distancio

*

seu altamiro

líria porto

calo grosso pele áspera
as unhas cheias de esterco
só largava da enxada
depois que o sol se punha

morreu antes da colheita

*

instrumental

líria porto

mais que a palavra
a música que fala por si
sol

*

domingo, 14 de junho de 2015

a louca

líria porto

dia e noite
madalena vestida de noiva
o branco encardido da roupa
o borrão do batom e da sombra
o olhar perdido nos homens
o corpo abusado por tantos
a zombaria de todos

madalena –– o fantasma
do amor

*

sábado, 13 de junho de 2015

das maçãs

líria porto

parti a vida em rodelas
as primeiras - as mais doces
fatias da meninice

mastigo-as uma por uma
mesmo as duras - saboreio-as
cuspo algumas

são poucas as que me restam
estas reparto com os netos
a maria o francisco

*

quinta-feira, 11 de junho de 2015

espeto

líria porto

tem sido uma seda
lisa macia
mas tal como a rosa
(e felizmente)
ela tem espinhos

*

ao namorado

líria porto

de ponta cabeça
o meu santo antônio

andas mais por fora
que anéis de saturno

tenho uma verruga
de apontar estrelas

e a noite é curta
para tanto sonho

*

soldadinho

líria porto

tira tua farda
guarda tua arma
que a minha cama
é território livre

*

quarta-feira, 10 de junho de 2015

cabeça de vento

líria porto

o que é importante eu esqueço
o que tem rei na barriga

*

preparação

líria porto

espero pelo melhor
se o pior vier – azar – vai me encontrar
desgrenhada

*

vaidade

líria porto

flor sem miolo
só pensava em ser bonita
em mudar a cor das pétalas
em trocar perfume
adorno
no começo me agradava
mas depois me dava enjoo

*

terça-feira, 9 de junho de 2015

suspeito

líria porto

aquele
cujas evidências
ninguém tem a prova
porém tudo indica
ele é preto
e pobre

(bode expiatório)

*

reticências

líria porto

as palavras são parceiras
companheiras aliadas
até certo ponto
e vírgula

*

perseguição

líria porto

escapei de vírus tiros
bactérias inimigos
vícios guerras
precipícios
não consigo - no entanto - livrar-me
da minha sombra

*

(peguei o sol no pulo) lésbica

líria porto

poesia me procura
fecho os olhos –– abro
as pernas

*

realidade

líria porto

em tempos bicudos
passarim troca de penas
mas não canta

*

pangarés

líria porto

pelo andar da carruagem
um reino em decadência

*

meus oito anos

líria porto

mamãe mamãe
o presidente getúlio
nosso vizinho da esquina
matou-se com um tiro
:
o presidente é o vargas
nosso vizinho é de castro
e continua vivo

(que mancada
contara pra deus e o mundo
que o presidente getúlio
frequentava nossa casa)

*

segunda-feira, 8 de junho de 2015

a esperança é um vírus ou uma bactéria?

quem cala concentra

tem algo de podre no reino dos puritanos

o amor cutuca-nos até nos ferir

terremoto - é um deus nos sacuda

ou rio da morte ou ela me inunda

um jeito de tentar exorcizar nossos medos é escrever sobre eles - com a mão trêmula

acerto prévio

líria porto

na minha hora
pago-lhe o óbulo da passagem
caronte me transporta em sua barca
à terceira margem

*

des_espero

líria porto

minh'alma na beira do cais
no aguardo do nunca
jamais

*

domingo, 7 de junho de 2015

susto

líria porto

calquei os freios
não por coragem ou prudência
por medo

a correria dá-me nos nervos
sou capaz de ficar
catatônica

*

da carne

líria porto

o boi pode ser vaca
bife não tem sexo
:
bem passado
não menstrua

*

sábado, 6 de junho de 2015

xará

líria porto

um santo com nosso nome
precisa ser festejado
meu pai fazia questão
são joão no alto mastro

bandeirolas e foguetes
doces salgados canjica
quentão com pinga e gengibre
farofa de carne seca

os parentes os vizinhos
os amigos mais chegados
e em volta da fogueira
com que eu vou me casar?
:
alegria sem tamanho
até quando o sol raiasse

*

sexta-feira, 5 de junho de 2015

incansável

líria porto

semeio-as rego
afofo a terra
capino adubo
espero espero
e as pedras que planto
não brotam

*

fundamentalismo

líria porto

por amor se morre
por amor se mata
por amor e ódio

*

o dicionário

líria porto

todas as palavras dentro de um livro
o significado – todos os sentidos
da minha língua

*

quinta-feira, 4 de junho de 2015

conto de phodas

líria porto

tinha um namorado
papai berrava – não phode
tem que casar primeiro

(phodíamos
mas ninguém sabia)

*

quarta-feira, 3 de junho de 2015

sádica

líria porto

insana insônia
assim – sem sono – os sonhos somem
só sobram serpentes silvos
sombras

*

terça-feira, 2 de junho de 2015

toró

líria porto

manhã emburrada
chororô na certa

*

tromba d'água

líria porto

nuvem de chumbo
parece prenha
de tanta chuva
:
eu tenho medo
que o céu despenque
e afogue o mundo

preciso bote remos e boia

(com muita sorte escapo
incólume)

*

segunda-feira, 1 de junho de 2015

poluição

líria porto

cagou e andou
quem veio atrás
pisou na bosta

(a terra roda
leva nas costas
tua lambança

tu não te importas?)

*

o confessor

líria porto

o padre peca – e não é pouco
depois perdoa o menino
que faz malcriação

(não sem penitência)

*

sonolência

líria porto

rei midas ao inverso
tocava – virava merda

(acordei um caco
como o prato
que quebrei
na pia)

*

interna

líria porto

soo
suo
sou



*

seu biloca

líria porto

meu pai
um homem popular
tinha bons amigos
conhecidos
inimigos

cultivava todos

*

sábado, 30 de maio de 2015

redemunho

líria porto

araguari –– minas gerais
o diabo passa a vassoura
e espalha as almas

(cada canto
um conterrâneo)

*

antes do fim

líria porto

talvez eu possa
posseiro do meu corpo
passear meus olhos
passar mel na boca
lamber-te

*

pulso

líria porto

selvagem
um cão viveria em matilha

domesticado
se não obedece o dono
o cão se torna seu líder
:
assim o filho
do homem

*

das lentes

líria porto

da cor do espaço
depois olhos de folhas secas
burro fugido
sei lá

só sei que não vejo bem

*

sexta-feira, 29 de maio de 2015

ex-mãe

líria porto

abriu mão dos mal-tratos
dos desprezos
do peso nos ombros
por um ingrato

muita vez cria-se cobra
em ninho de passarinho

*

ruminantes

líria porto

com tanto para se ver e viver
e nós - confinados - a mascar capim seco
ração de gado

*

facebook

líria porto

vasto pasto onde nós –– bestas
pastamos e cagamos sem ousar
pular a cerca

*

quinta-feira, 28 de maio de 2015

marginal

líria porto

esbarro transbordo derrubo
perdi a noção das bordas
quem vai me impor limites?

*

adoração

líria porto

rodeava o umbigo com o dedo
metia-lhe a língua e bebia
a vaidade que eu tinha

*

baião de dois

líria porto

feijão velho não presta
fica duro e cascudo

arroz novo é que prega
vira papa no fogo

o segredo?
arroz velho feijão novo

*

quarta-feira, 27 de maio de 2015

atalho

líria porto

corto caminho
troco a rota das certezas
por desvios

e faço perguntas

*

terça-feira, 26 de maio de 2015

natimorto

líria porto

entre as irmãs
um menino
feliz infeliz machista
hétero homo bissexual
solidário com as mulheres
bom ou mau amante
socialista reacionário
como seria meu filho
que não chorou nem sorriu
e hoje teria
quarenta e cinco anos?

*

do tempo

líria porto

na alegria um corisco
na amargura uma lesma

*

dos deuses

líria porto

do alto do pedestal
ao rés do chão
um abismo

eu sou um reles mortal
e conto mesmo
é comigo

*

segunda-feira, 25 de maio de 2015

ho(r)mônimos

líria porto

a saia suja o sangue do chico
levei um susto do chico?
respondeu-me – sim  do chico
fiquei velha e ainda menstruo

*

pau oco

líria porto

pessoas muito santas têm uma fúria
em seus olhos mansos –– prefiro
quem não finja

*

domingo, 24 de maio de 2015

branca de neve

líria porto

as maçãs me acalmam
não pelo sabor propriedades
antes pela cor e beleza
da casca

*

crateras

líria porto

vão-se os bons – os vãos ficam
acumulam-se em vácuos buracos
e despenhadeiros

*

camaleões

líria porto

nada como um namorado
para mudarmos de vida
deixar que ele decida
o que é bom para nós

só quando o amor termina
voltamo-nos à rotina
àquela monotonia
que é a nossa cara

(cada um é uma cartilha)

*

sábado, 23 de maio de 2015

absurdo

líria porto

o silêncio absoluto
tem zumbido –– quanto mais surdo
maior o barulho no ouvido

*

poda

líria porto

para escrever um poema
eu uso poucas palavras
e das palavras que eu uso
eu capo mais da metade

*

noite na roça

líria porto

lantejoulas no céu
mas uma vez ou outra
chove vaga-lumes

*

saara

líria porto

ser_tão deserto
no silêncio barulhoso das tendas
rendas sedas e tafetás

*

hímen

líria porto

o papel virgem
e a ponta do lápis
não sua direção

(um ponto uma vírgula
uma gota de sangue)

*

sexta-feira, 22 de maio de 2015

agora ou nunca

líria porto

vou e voo
ou me contento
com um relato
bem diferente
do que sinto
e penso

a vida ruge
batom

*

no divã

líria porto

extrair do sonho
aquele sentido
não o óbvio
o do labirinto
que antes nos dribla
mascara a censura
até conduzirmo-nos
ao farol

*

quinta-feira, 21 de maio de 2015

vogal

líria porto

aposto  a peste nem despista
ao pastar as nossas pústulas

*

vaidades

líria porto

andei a pisar em ovos
uns chocos de casca mole
cozidos de gema dura
outros fritos

andei a pisar em ovos
masculinos

*

quarta-feira, 20 de maio de 2015

dos ciúmes

líria porto

muita vez
enquanto dorme
sussurra no meu ouvido
uma palavra obscena

(então me ponho em vigília)

será que sonha comigo
ou co'a morena fogosa
que passa o dia com ele
naquele escritório?

(eu já fui mais eu)

*

perdas

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