pica-pau batia o bico
na beira da minha cama
xô pica-pau não faz isso
papai pode não gostar
:
ah que bobagem
tu gostas? gosto
isso é o que mais importa
deixa o papai pra lá
passarinho me rodeia pede casa pede alpiste ponho água na janela um punhado de comida permito que me visite mas gaiola não lhe dou faça ninho numa galha eu já tenho uma família e não quero outra
fura-olho fingido
traíra
(tudo a mesma coisa)
às vezes dá dois beijinhos
e cospe em nossa orelha
seu veneno de víbora
:
quem fala mal de um e outro
difama a todos –– inclusive a mim
e a ti
nem mais nem menos
o tanto
para suprir a família
pagar as contas
mandar os filhos à escola
os uniformes os livros
a festa de são joão
e no natal
a ceia com rabanadas
castanhas
lembrancinhas pras crianças
um vestido pra mamãe
sapatos novos
:
meu pai –– riquíssimo
com seu cigarro de palha
no balcão do armazém
de sol a sol
tem cupim dentro do pau
vasilhas sujas na pia
o varal arrebentou
faz dias não varro a casa
a geladeira vazia
(levas de refugiados
mortes em alto mar
desespero violência
acusações e golpistas
a direita não dá trégua)
poesia nem me digas
estou sem prazo
pro verso
ao exilar-me de mim mudar de dentro da pele não fazer nenhum esforço nem pra rir nem pra chorar não sentir mais dor alguma saudade tristeza alegria tornar-me uma entrelinha dormirei o sono justo
vovó quer que os cabelos cresçam só para fazer um coque eu não vou é raspar a cabeça passar máquina dois ou três para pirraçar o vento que me põe em maus lençóis