domingo, 30 de agosto de 2015

regresso

líria porto

eu estrelo – ele tucana
e bicudo não me beiça

(no frigir dos ovos)

*

a chance

líria porto

já não tenho tempo
pra matar o tempo

viver tem começo
tem meio e tem fim

no final da linha
onde eu me encontro

embarco num voo
ou pasto o capim

*

segredo

líria porto

da boca pra dentro
confusão barulho
da boca pra fora
sigilo

*

sábado, 29 de agosto de 2015

pano de chão

líria porto

o tempo faz-me uns furos
eu me cirzo com frequência
nem por isso tranquilizo-me
esgarço-me por fora
e por dentro

*

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

desconstrução

líria porto

tecer um manto leva tantos dias
desmanchar um manto
um piscar de olhos

*

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

origem

líria porto

na semente
mora a floresta

em nossos netos
a humanidade

*

guerrilha

líria porto

essa brancura de pele
é apenas acidente de percurso
podíamos ter outra cor
outra textura
nada disso nos faria diferentes
ser gente é questão de postura

*

ilícitos

líria porto

soube-se
de fonte limpa
que se locupletam aqueles
que usam métodos
sujos

*

na biblioteca

líria porto

nada como um dia atrás das ostras
e das pérolas

*

do espetáculo

líria porto

sigo sem pique para tanta coisa
tenho estado triste e muito cansada
subo a ladeira até a metade
e depois despenco como fosse
um caco

nessas alturas saltar obstáculos
tão grande o esforço que me leva a nada
pressinto que paro a qualquer momento
fecho a cortina e abandono
o palco

*

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

gatilho

líria porto

aos que abominam a velhice
a vida oferece uma chance
a morte prematura

ninguém segura o tempo
a tempestade
o vento

*

terça-feira, 25 de agosto de 2015

febre

líria porto

da ponta do cabelo
à sola do pé
o arrepio

doido
doído

*

sentença

líria porto

em 1945
fui condenada
à vida

para cumprir pena
ganhei asas

(no corpo
um bolo
de setenta
velhas
:
todas de pavio
curto)

*

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

maioria

líria porto

tem tanta estrela no céu
tem tanta estrela no mar
tanta estrela no planeta
mais que tucano
e urubu

*

reza

líria porto

o pão nosso –– pão francês
dai-nos hoje com manteiga
não com margarina

*

domingo, 23 de agosto de 2015

legítima defesa

líria porto

em qualquer lugar do mundo
onde te visse saberia – perder-me-ia
de mim

a carne é faca

*

debaixo

líria porto

excluímos da nossa vida
o ex-amor o ex-amigo
porém à noite
num sonho
sentam-se à nossa mesa
servimos-lhes pão e vinho
e todos os sentimentos
que havíamos banido
estão lá
ainda queimam
:
brasas cobertas de cinza

*

vizinhos

líria porto

o futuro é logo ali
no próximo minuto
:
e não existem distâncias
toda lonjura é perto

*

face

líria porto

a beleza não carece muito
faz-se de jeito simples

*

das convicções

líria porto

não fica em cima do muro
ou está dentro ou está fora

se dentro mergulha fundo
se fora não participa

há causas que não aprova
não sabe fazer intriga

atear fogo no circo

*

maciço

líria porto

no dia da despedida
o abraço maior do mundo
entraste pelos meus poros
formamos u'a massa única
metade de nós foi embora
a outra ficou em mim

*

sábado, 22 de agosto de 2015

versos noturnos

líria porto

não vou me deixar morrer
por um sonho arruinado
nem sempre nossos anseios
correspondem à realidade
melhor arregaçar as mangas
e continuar

*

o mentiroso

líria porto

nem co'a boca na botija
e provas que o acusam
admite a falcatrua

põe uma cruz sobre o peito
faz cara de cu pra dizer –– não fiz mal algum
ao trono não renuncio

(e que tudo o mais se foda)

*

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

plasta

líria porto

tinha sangue de barata
a mosca-morta

*

jardim da infância

líria porto

pátio do colégio
criançada de uniforme
bando de andorinhas

arrulhos brinquedos
alegria que floresce
risos que borbulham

*

mamãe

líria porto

eu te amo
mas não sem conflito
quando dás um grito
ou me ameaças
eu sinto vontade
de fugir de casa

quando eu crescer
e fores velhinha
como a vovó
vais morar comigo
e não num asilo
não te abandono

então eu te digo - fica calma mãe
vou ser um bom homem

*

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

das emoções

líria porto

o amor é discreto
raramente atravessa as paredes
o piso o teto ou vai à janela gritar
:
o ódio é que faz escândalo

*

partícula

líria porto

eu é tão pouco
a_penas grão de areia
e deserto

eu é quase nada
e ao mesmo tempo
é oásis

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) desejos mínimos

líria porto

o que eu quis e quero
não é ser bailarina do moulin rouge
nem dançar um tango em buenos aires
o que mais desejo é dançar bolero
com um cafajeste
                        num motel da estrada

*

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

sequestro

líria porto

o vento me empurra
(que amante rude)
arranha-me a pele
embola meus pelos
e nem se desculpa

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) sem rima nem métrica

líria porto

eu tenho a boca suja mas mãos limpas
mando à puta que pariu fico com raiva
reconheço que errei peço desculpas
o que tenho a dizer digo na cara

eu não conto os segredos do ex-amigo
não deduro companheiro nem a pau
e nem julgo o que fez os seus motivos
cada qual sabe de si e ninguém mais

falo não falo talvez e falo sim
faço silêncio se preciso preservá-lo
quero distância é dos donos da verdade

eu não temo a solidão – prefiro assim
a caminhar na caravana dos fingidos
dos que sorriem e nos furam com punhal

*

sábado, 15 de agosto de 2015

chave de braço

líria porto

para o pai era atrevida
para o marido mandona
o avô achava-a
um amor
;
trata-nos como rebeldes
quem nos quer domesticar
calar-nos a boca

*

pitbulls

líria porto

nem havia cercas
depois fincaram estacas
esticaram arames
levantaram muretas
muros altos
puseram cacos de vidro
passaram fios elétricos
e por último
os rolos de aço
pontiagudo
:
ninguém mais
dá bom-dia

*

passaredo

líria porto

os ninhos acordam
piu firifiu fiu fiu fiu
a sinfonia

*

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

madeira de lei

líria porto

foi-se
não sem resistência
teimava em viver
amava mais a vida
do que amou a mim
ou outra pessoa

*

descompasso

líria porto

o bicho-homem
sedento faminto
ávido por lucro
nem mastiga
devora tudo

a natureza
o seu ritmo
gasta séculos
para recompor
os recursos

(a noite se aproxima)

*

perdulários

líria porto

quem atira pérolas aos porcos
ainda vai usar colar
de pipoca

*

margaridas

líria porto

singelas
sem perfume
embelezam campos
praças ruas becos
casas casebres
e avenidas
:
florescer é um ato heroico

*

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

bicho-do-mato

líria porto
o lugar que moro –– rente a quase tudo
um furo na terra para onde rolo
e fujo do perigo
(sou o tatu-bola)

*

o outro lado da moenda

líria porto

quem procura
pode achar um furo
em qualquer postura

quadrados e cúbicos – prefiro
os redondos

*

terça-feira, 11 de agosto de 2015

varredura

líria porto

soltam-se as folhas
curvam-se as cerdas
formam-se bolhas
nas mãos das servas

vassouras varrem
o vento suja
o vento não sabe
quanto lhes custa

*

malcriada

líria porto

desafiar a censura
dar banana à opressão
dizer não se esperam sim
e quando precisar
um palavrão

(as rimas em ão são mais brutas)

*

(meta)morfose

líria porto

o feto
o bebê o menino
o moço o adulto o velho
o defunto
:
todos num corpo só
da entrada à saída do mundo

*

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

o mundo

líria porto

descartável fictício virtual
não mais olhos nos olhos
encontros de família

a convivência?
nas redes sociais

a lua?
uma fotografia

*

nutricionistas

líria porto

não nasci ontem
sou de outro século
do tempo que a gente
não precisava de gotinhas
de vitamina d
nem usava complemento
vitamínico

tem sol lá fora
feijão milho laranja e banana no pé
:
chão é laboratório

*

domingo, 9 de agosto de 2015

dom juan

líria porto

faz tempo que não te beijo
mas não me esqueço do cheiro
do jeito que me abraçavas
horas inteiras no leito
de algum lugar

o despertar apressado
cada qual pra sua casa
pra não levantar suspeita
e tanta coisa era feita
debaixo do acolchoado

*

sábado, 8 de agosto de 2015

impenetráveis

líria porto

pedra é pedra
até certo ponto
depois vira piso
teto alicerce lápide
muro
estátua imagem
facínora

*

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

periféricos

líria porto

os dedos formigam
e assim
dormentes
não sentem nas pontas
as teclas que insistem
em versos capengas
tão mal empilhados
sem sumo e sem cepa
quais fossem um punhado
de cacos de vidro
ou areia

*

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

interpretação

líria porto

poder eu posso não sei se devo
as circunstâncias são favoráveis
penso nas consequências
:
a vida cobra – é cascavel

*

drible

líria porto

em caso de pesadelo
trocar de cama e manter
a luz acesa

monstros são formigas
desbaratada a trilha
eles não retornam

*

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

nascimento

líria porto

a urgência o sexo
trinta e seis semanas
e a vida a jorrar
entre as pernas

*

cascatas

líria porto

as águas
a correnteza
o penhasco
o salto
o véu da noiva
a pedra
o rompimento do hímen
;
já não existem
donzelas

*

difícil

líria porto

mas dentro da casca grossa
pode haver sabor incrível – vide
o abacaxi

*

terça-feira, 4 de agosto de 2015

caudaloso

líria porto

meu amor nasceu na serra
fez a curva deu a volta
tropeçou na pedra
transbordou
não encolheu seu destino
:
morreu no mar
como um rio

*

ponto

líria porto

comboio de dúvidas de ansiedades
tombamento no meio
da página

*

maria fumaça

líria porto

nos mesmos trilhos
enquanto vou ela vem
é certo –– na hora certa
a gente bate de frente
:
a morte e eu

*

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

reincidência

líria porto

vez em quando vez em sempre
vez por outra menos mais
saberei com qual frequência
dir-te-ei nunca
jamais

*

satélite

líria porto

no universo da pele
o maior órgão do corpo
a sensação que me impele
a girar no seu entorno

*

desacordo

líria porto

eu sou a minha patroa
boa para mandar –– péssima
para obedecer

*

de verdade

líria porto

amélia
é que era
mulher
deserdada

*

santo

líria porto

dai-me algum sonho
um chá pelo menos
uma farda prateada
um padrinho
algo que me aproxime
do vosso deus

*

resgate

líria porto

sinto saudades tuas
mesmo se estás do lado
amo-te por nós duas
água do mesmo pote
farinha do mesmo pão
terra do mesmo barro

*

domingo, 2 de agosto de 2015

(peguei o sol no pulo) amargura

líria porto

como falar de flor
se hoje estou um espinho


*

demora

líria porto

quem espero
não me alcança

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) sedução

líria porto

tem homem que me deixa tonta
o garçom por exemplo

*

sábado, 1 de agosto de 2015

a namorada do papai

líria porto

sem louros medalha
com a calma das trepadeiras
:
a pele sempre boa

*

a casa

líria porto

a passarada acorda
todos abrem o bico
pai mãe filho vizinhança
ninguém se entende

voa um pra cada lado
a árvore em silêncio

*

aposentado

líria porto

palavras cruzadas
a mesma letra a servir a outras tantas
verticais horizontais
e o velho a queimar tutano

*

quando eu morrer vou virar entrelinha

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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