tanto mar
–– a mão que governa o verso balança os muros –– (líria porto)
sábado, 31 de maio de 2014
osso duro
líria porto
olhos vazados corpo sem carnes riso permanente
a morte parece fraca mas dela
ninguém escapa
*
pernoite
líria porto
luz acendo luz apago
mais pareço um pirilampo
vivo em busca de algo válido
os meus olhos de espanto
tão mirrada a claridade
tão funda a escuridão
*
sexta-feira, 30 de maio de 2014
nascimentos
líria porto
espontâneos
brotaram como filetes
genuínos olhos d’água
outros iguais laranjas
precisei cortar as cascas
para retirar o caldo
aquele verso –– um ovo
nasceu com imenso esforço
ou teve que ser chocado
(parto natural cesária
ou fórceps)
*
quarta-feira, 28 de maio de 2014
a corja
líria porto
descoberta a falcatrua
sem coragem para assumir o erro
um bezerro para bode expiatório
*
vácuo
líria porto
eu tenho sentido
que só tem sentido
contigo por perto
depois que partiste
meu verso é mais triste
que um rio seco
*
economia
líria porto
aqui fora as horas voam
volto-me para dentro
para (a)guardar o tempo
que me restou
*
dona xepa
líria porto
menina moça mãe avó anciã
cinco numa só até o final
da fera
*
castigo
líria porto
faz-se aqui e aqui se paga
com juros e correção
ainda mais se a praga
for de madrinha
ou de mãe
*
humores
líria porto
com toda tragédia e drama
esta vida é uma comédia
e eu - ator - o que sou?
um tolo
um bobo alegre
rio que oceano
*
(peguei o sol no pulo) pena capital
líria porto
se a tinta secar escrevo
com sangue
*
cobertor
líria porto
anjos de pedra sobre os túmulos
mármore nas lápides
:
frio – nem morta – quero ser
cremada
*
segunda-feira, 26 de maio de 2014
lençóis
líria porto
danço uma dança macabra
eles se assustam esticam-se na cama
deito em cima dum cubro-me com o outro
e durmo profundo
co'os meus fantasmas
*
domingo, 25 de maio de 2014
tensões
líria porto
vós que tendes tantos nós
podíeis relaxar um pouco
bambo é que é bom
*
quinta-feira, 22 de maio de 2014
voos
líria porto
isolamento
confinamento em casulo
metamorfose
procuro
o que poça
*
quarta-feira, 21 de maio de 2014
refúgio
líria porto
canja caldo sopa
a acalmar a fome
confortar o sono
qual colo de mãe
cobertor de lã
*
vícios
líria porto
além do tempo que cada qual teríamos
abrimos mão de nós mesmos
matamo-nos a cada dia
*
fúria
líria porto
olha
não te desvies
toca a ferida
que tu mesmo abriste
e lambe
engole o sangue
sacia tua sede
a fome
depois
cospe ou vomita
minha carne fraca
a vítima
*
terça-feira, 20 de maio de 2014
colagem
líria porto
a minha alma
um mosaico
cacos de cada dia
louças pedras azulejos
um quadro desordenado
de coisas novas
e antigas
*
plantação
líria porto
os grãos de milho
tenros cheios de leite
envoltos em palha verde
agarrados ao sabugo
e protegidos do frio
são como nossos bambinos
grudados ao peito
*
segunda-feira, 19 de maio de 2014
auto-estima
líria porto
tu viverias sem mim – eu não
só por isso eu me amei mais que a ti
e me pus a primeira da fila
estou às minhas ordens
*
dia desses
líria porto
maria faz cinco anos
maria é mais do que festa
maria é vida e esta
agacha pula
e saltita
*
despoeta
líria porto
tristeza espanta palavra
melhor ficar bem quieta
e de boca fechada
*
indigência
líria porto
o amor não é algo leviano
que pula de um corpo pra outro pra outro pra outros
no prazo de um ano
isso é falta miséria carência
é fome e é sede de gente
*
até o fim
líria porto
o verso mais bonito
fá-lo-ei pelas últimas horas
co'os dedos já frios e a boca
cianótica
vou morrer de ataque cardíaco
*
indigência
líria porto
o amor não é leviano
a pular de galho em galho
no ínfimo prazo de um ano
*
domingo, 18 de maio de 2014
temporada
líria porto
a tristeza se hospeda na gente
ocupa o térreo o porão e o sótão
não é morador permanente
mas às vezes demora
demora
*
sábado, 17 de maio de 2014
buquê
líria porto
repisar palavras extrair-lhes o sumo
servi-lo em cálices – o aroma
a embriagar-nos
volátil volúvel
lunático
absoluto
*
quinta-feira, 15 de maio de 2014
andarilho
líria porto
a porta entreaberta
entra quando quiseres
deita em minha cama
come do meu prato
usa o meu copo
a minha toalha
quando puderes vem
se eu não estiver
espera-me
se eu não voltar
apodera-te
de tudo que já te dei
o que é meu
é teu
*
ancião
líria porto
depenou os dias – um a um
até obter a plumagem e a sabedoria
das crianças e dos passarinhos
*
praia
líria porto
atrás o mar
à frente a montanha
e aqui nesse lugar
areia areia areia
deserto
com tanta gente
por perto
*
quarta-feira, 14 de maio de 2014
o trem foi difícil
líria porto
se eu minto pode ir no meu velório
ninguém dá valor a testemunha
ninguém se lembra
mas eu não me esqueço
achei que era o fim
e pra resumir tinha oito demônios
para derrubar o avião
*
denúncia
líria porto
o sujeito bebe uns goles fica alegre
pensa que é nada se acostuma
começa a cheirar farinha
tem trem que nem parece verdade
a polícia mexeu na minha mala
e o senhor sabe – polícia
corta cabeças
*
esperteza
líria porto
o tonto foi beber pinga
tinha mosquito no copo
bebeu e foi lá no balcão
me dá outra pinga
naquela tinha mosquito
*
meu pai
líria porto
filho de ana luiza neto de flávia
a mulher da cara brava
estudou pouco
talvez jamais tenha lido um livro
mas tinha boa letra
não errava as contas
e gostava de caneta parker
*
inesquecível
líria porto
nosso amor era um marujo
com nome de peixe que amou
mãe d'água
agora tem asas
navega no azul e em nossas
veias
aposto que feliz
*
domingo, 11 de maio de 2014
ficção
líria porto
puxar a casca da ferida
deixar o vermelho escorrer
distrair-me da dor
(não
um filete
demora)
puxar o fio que me liga
cortar-me a jugular
com a navalha
(melhor
ver um filme
de terror)
*
mineira
líria porto
por onde ando
o mar vem junto
na memória
na lembrança
*
comércio
líria porto
datas marcadas – dia disso
dia daquilo
quando alguém se locupleta
o amor vira refém
hoje é para sempre
*
faz de conta
líria porto
estar perto
porém do lado de fora
sem nenhuma intimidade
sem elo algum
ter mais um
de uma série de corpos
de conquistas
*
sexta-feira, 9 de maio de 2014
posto de saúde
líria porto
crianças e velhos
todos portadores do vírus
do tempo
desses ninguém escapa
nem com vacina ginástica
ou bisturi
(tarda mas não falta)
*
oroboro
líria porto
final pode ser recomeço
outra viagem uma aventura
outro capítulo outro casamento
um nascimento outro emprego
a próxima onda
ou pode ser a chave
o fecho – a hora do aplauso
ou da vaia
*
quinta-feira, 8 de maio de 2014
dedo de moça
líria porto
escravos da palavra
levam chibatadas
a poesia passa unguento nas feridas
depois salga-as –– põe pimenta
e o que não os mata
fortalece-os
*
conceitos
líria porto
há muitos jeitos de ser
quase todos válidos
mas tem os que insistem em julgar
quem não reze o seu credo nem siga
a sua cartilha
*
flecha
líria porto
romper as barreiras com um pensamento
mais que alento ou conquista
é num instante estar com alguém
noutro lado do mundo
*
quarta-feira, 7 de maio de 2014
no divã
líria porto
decodificar grilos emendar retalhos
tecer colchas para o leito do rio
deitar e sonhar que os sóis
são toalhas de banho
:
as pedras serão removidas
*
terça-feira, 6 de maio de 2014
regenerar
líria porto
deitar de bruços
dormir um sono de pedra
sem sonho nem pesadelo
despertas
fazer o que tem que ser feiito
sem reclamar do cansaço
o dia é grande
*
domingo, 4 de maio de 2014
dificuldades
líria porto
eu – bruma – rasguei-me num espinheiro
mas não perdi a ternura pelos caminhos
esquerdos
*
a espera
líria porto
rio triste
seco
e não vens
:
tu
a chuva
a boa colheita
*
sábado, 3 de maio de 2014
linguarudas
líria porto
as tais faladeiras
das conversas parvas
não se cansam nunca
de gastar palavras
de segunda a sábado
fabricam futricas
porém no domingo
vão louvar a deus
*
jequitinhonha
líria porto
mais que o cheiro e a cor
o que havia na beira do rio
era o riso e o canto
das lavadeiras
as vozes corriam aos tropeços
iam com a espuma e eu que sabia do mar
sonhava com a cantoria
(pássaros de barro
sobrevoam o vale
:
água adentro)
*
sexta-feira, 2 de maio de 2014
segredo de estado
líria porto
quem vai dizer sobre ti
senão eu que te conheço
de cabo a rabo
(mas nunca vou te trair
nem se arrancarem-me
as unhas)
*
miragem
líria porto
ficava a ver navios
nessa secura de versos
nesse deserto de rimas
um reflexo de poeta
um lado de lá de espelho
um ateop
um grão de areia
*
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