quarta-feira, 30 de setembro de 2015

a ampulheta

líria porto

a cada dia
um dia
até que um dia
a gente acaba

(e tudo começou naquela noite)

*

bolo de velha

líria porto

sempre outubro
e em pouco
septuagenária
cada dia mais perto
cada dia mais frágil

não me preocupo
nem me preparo
ninguém foge
antes da hora
apenas submerge

*

a plantação

líria porto

um por um
com raiz e tudo
dentes unhas cílios
fios de cabelo
curiosidades
medos

*

terça-feira, 29 de setembro de 2015

enfrentamento

líria porto

olho no olho – de cegar
qual fosse o sol
ela a terra
:
continua em sua órbita
a impor limites

*

a alma do negócio

líria porto

lava esfrega torce 
perfuma
deixa a roupa sequinha 
um luxo
faz por mim 
o que eu não faria
:
a minha electrolux
porta frontal

*

roça

líria porto

como fossem catapora
na pele do céu 
as estrelas

*

a farra

líria porto

iguais patinhos no lago
os meninos na piscina
quá quá quá – tantas risadas
brincar é mais que existir

*

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

a prole

líria porto

crianças como andorinhas
revoam no nosso entorno
ficamos tontos lembramos
do tanto que também fomos

*

desembarque

líria porto

invento o mar
um navio
tua volta para casa
invento o cais
uma praia
um rio que te deságua
entre as montanhas
de mim

*

total

líria porto

a lua veio com tudo
saia rodada de renda
contudo a terra
ciumenta
quis ofuscar o seu brilho
meteu-se na sua frente
ocasionou um eclipse

*

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

pega

líria porto

pica-pau batia o bico
na beira da minha cama
xô pica-pau não faz isso
papai pode não gostar
:
ah que bobagem
tu gostas? gosto
isso é o que mais importa
deixa o papai pra lá

*

um menino

líria porto

não conheceu as irmãs
ninguém ouviu o seu choro
à saída do hospital
entregaram-no aos pais
em caixa de papelão
:
ele e uma flor

*

pão e vinho

líria porto

eu sou minha tu és teu
e de nós dois – só o brinde

*

andorinha

líria porto

nas horas de voo
ela faz escala
na minha janela

pousa na beirada
bebe um pouco d'água
e voa de novo
:
corta a paisagem
asas de tesoura

*

joaninha

líria porto

menina tão chique
roupinha vermelha
cheia de bolinhas

caminha com pressa
que essa vida é breve
procura uma flor

algum girassol
a rosa amarela
u'a margarida
:
é primavera

*

terça-feira, 22 de setembro de 2015

vário

líria porto

fazes assim faço assado
e não esperes de mim
que eu seja o teu
reflexo

*

uma hora tudo acaba

líria porto

passou anos consumida
numa vida tão amarga
que a vida deu-lhe
um suspiro
:
o último

*

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

nem tanto

líria porto

passarinho me rodeia
pede casa pede alpiste
ponho água na janela
um punhado de comida
permito que me visite
mas gaiola não lhe dou
faça ninho numa galha
eu já tenho uma família
e não quero outra

*

bipartido

líria porto

fura-olho fingido
traíra
(tudo a mesma coisa)
às vezes dá dois beijinhos
e cospe em nossa orelha
seu veneno de víbora
:
quem fala mal de um e outro
difama a todos –– inclusive a mim
e a ti

*

censura

líria porto

de terno e gravata
o sem-vergonha de sempre

índio caminha nu
e nunca foi indecente

*

onda

líria porto

o mar avança
depois recua
nessa incerteza
a maré enche
e se esvazia
:
conforme a lua

*

noz

líria porto

come a castanha
quem rompe o lacre
da virgem

*

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

a fortuna

líria porto

nem mais nem menos
o tanto
para suprir a família
pagar as contas
mandar os filhos à escola
os uniformes os livros
a festa de são joão
e no natal
a ceia com rabanadas
castanhas
lembrancinhas pras crianças
um vestido pra mamãe
sapatos novos
:
meu pai –– riquíssimo
com seu cigarro de palha
no balcão do armazém
de sol a sol

*

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

o tempo não tem tampa

líria porto

a lua é tão velha tão velhinha
que vovó era menina
e a lua já existia

*

inseparáveis

líria porto

a sombra cresce conosco
encolhe-se ao meio-dia

para encará-la nos olhos
só de costas para o sol

(qualquer dia crio asas
deixo a sombra para trás)

*

trabalho forçado

líria porto

tem cupim dentro do pau
vasilhas sujas na pia
o varal arrebentou
faz dias não varro a casa
a geladeira vazia
(levas de refugiados
mortes em alto mar
desespero violência
acusações e golpistas
a direita não dá trégua)
poesia nem me digas
estou sem prazo
pro verso

*

terça-feira, 15 de setembro de 2015

êxodo

líria porto

pertences conquistas
deixar tudo e seguir
olhos no horizonte
rumo ao desconhecido
(manter vivo o sonho)

só a existência
corre riscos

*

fogo-fátuo

líria porto

ao exilar-me de mim
mudar de dentro da pele
não fazer nenhum esforço
nem pra rir nem pra chorar
não sentir mais dor alguma
saudade tristeza alegria
tornar-me uma entrelinha
dormirei o sono justo

*

provedor

líria porto

teu corpo – meu oásis
matava-me a fome a sede
repunha minha energia

eu vivia pedra e areia
eras o que eu tinha

*

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

autômato

líria porto

inspiro expiro caminho
e como e bebo e bocejo
ligado no automático
a vida pasta
não vejo

*

acusação

líria porto

tirem o cavalinho da chuva
eu tu ele nós vós eles – vocês
ninguém passará incólume
menos ainda quem julga

*

domingo, 13 de setembro de 2015

nau frágil

líria porto

nossas crias batem asas
sentimo-nos pequeninos
:
saudade pesa igual chumbo
o nosso barco sem rumo

*

sábado, 12 de setembro de 2015

santinha

líria porto

fosses o osso
o cachorro não te largava
rosnava com todos
vacilava ao trocar-te
por carne

*

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

inveja

líria porto

tem uma rolinha
arrulhando e fazendo ninho
na minha janela
:
e eu sem passarinho

*

terça-feira, 8 de setembro de 2015

equação

líria porto

todas as mães
tão múltiplas de si
tão divididas

*

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

neuroses

líria porto

enrolo-me enrolas-te
enrolamo-nos
e neste embaraço
algozes somos nós
tão desumanos

*

rodeio

líria porto

rastilhos de pólvora
passam rente ao povo

gritaria estrondo
o chão estremece

não sei se alegria
ou se desespero

desse homem pobre
sem terra e sem gado

que se agarra à festa
por ser boiadeiro

*

domingo, 6 de setembro de 2015

no fígado

líria porto

quem vai na onda é surfista
a minha pista é a verdade
e não existe só uma

as verdades são murchas
demoro a analisá-las
não sou leviana

(nem da mídia)

*

cova

líria porto

máscaras mágoas ressentimentos
tudo na mesma vala
a sete palmos

(em vida
ervas daninhas)

*

sábado, 5 de setembro de 2015

puteiro

líria porto

que inveja das mulheres
dos seus bobes dos seus
robes
saltos altos
dos seus homens
da fumaça dos cigarros
do uísque
das noitadas
de tudo que não vivi

*

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

descabelada

líria porto

vovó quer que os cabelos cresçam
só para fazer um coque
eu não
vou é raspar a cabeça
passar máquina dois ou três
para pirraçar o vento
que me põe em maus lençóis

*

privacidade

líria porto


consigo
comigo

*

domingos e feriados

líria porto

dias inúteis
(na opinião do patrão)
dedico-os a meus filhos
reparo como cresceram
nos dias que trabalhei
de sol a sol

*

rapina

líria porto

quer a curva não o ângulo
por mais desdobrado que seja
que as retas o aborrecem
para as guinadas é lerdo
prefere ir lentamente
circular
asas abertas

(nem regurgita a carniça)

*

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

de pousos e voos

líria porto

fui pela sombra
e a sombra
sempre agarrada a meus pés
diluiu-se

esse assombro
que as borboletas conhecem
em sua vida tão breve
segue comigo

*

soberania

líria porto

sou uma espécie de rainha
sem súditos sem seguidores
sou a rainha de mim

*

renda de bilro

líria porto

milhares de bicos
um canto bem orquestrado

a prima vera capricha
pendura flores nas árvores

as cores são tão bonitas
não sei fazer destas mágicas

vou passear co'os meninos
andar juntos de mãos dadas

*

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

nuvem

líria porto

podes chover canivete
punhal espinho
o que flor
não deixes de chover chuva
um pouco para cada planta
um copo para cada bicho

(todos secos
e ávidos)

*

recônditos

líria porto

dentro – bem lá no fundo
debaixo de pedra ferro
e cimento
vontades secretas
desejos incômodos

(resíduos do inconsciente
de tudo que nos traduz)

não somos amenos

*

desembarque

líria porto

um dia uma hora
um minuto
mas não
o mar não veio
nem sua espuma

morro na areia
junto do cais

*

a musa

líria porto

não lhe importa o que a moça faça
se vai à missa se ama os beatles
se usa saias curtas meias soquete
tênis vidrilhos ou miçangas

só pensa na graça
dos seus seios
púberes

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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