quinta-feira, 31 de outubro de 2013

vadiação

líria porto

eu nem queria
mas ele insistiu
e eu fui

olha amor
essa eu te devo
comer tudo e lamber
a travessa

*


raio-x

líria porto

um olho cega e o outro
para compensar os dois
vê tudo em dobro
:
o que enxerga
e os sonhos

*

terça-feira, 29 de outubro de 2013

chatura

líria porto

a mosca da padaria
zumbia a meu redor
eu dava tapas
espantava-a
ela fingia não ver

pus cerca elétrica
que nada
ainda assim insistia
fazia plantão
dia e noite

tomei banho de sal grosso
comprei figa pé de coelho
pus vassoura atrás da porta
ramo de arruda na orelha
e arranjei espingarda

(ufa)

*

vovó

líria porto

ela é quase setentona - a nona
e em breve vira a décima

*

bipolar

líria porto

a alegria
a tristeza

ora uma
ora outra

batem
sopram

(eu que sofro)

*

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

incréu

líria porto

pastor padre papa monge
eu só quero ver de longe

*

revisão

líria porto

sou a que me reescreve
muda-me os pontos de vista
também para a nuca

*

carcará

líria porto

passou arame farpado em torno do meu corpo
estanquei o sangue e pulei a cerca
só por desaforo

*

uvas verdes

líria porto

contigo iria a paris
tu não quiseste então fico
nem gosto de viajar

*

domingo, 27 de outubro de 2013

vertigens

líria porto

tango em buenos aires
valsa em viena samba no morro
crepúsculos com almodóvar
al pacino e eu –– em qualquer lugar
a qualquer hora

*

sábado, 26 de outubro de 2013

infeliz

líria porto

cheio de vazios
vazio de si
a vagar no nada
a nadar nos vãos
nos nãos
nos retalhos
no fiapo de vida
que ainda lhe resta

(o pobre diabo
com chifres na testa)

*

sirena

líria porto

gostava da asfixia
das mãos que lhe apertavam
o pescoço

a areia movediça
tragava suas pernas
o sexo os seios
a cabeça

(recusou socorro)

*

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

inconsequentes

líria porto

mordes e sopras
jogas nas minhas feridas
teus perdigotos
eu me incomodo
mas não tanto
pois te mantenho por perto
e também te infecto

neste jogo de poder
tu que não és
ainda és
eu que não sou
ainda sou
a engrenagem que gira
que faz mover
o motor

somos loucos

*

paixão

líria porto

uma espécie de tara
que tira toras da gente
bem na altura do peito
e altera a batucada

*

sumiço

líria porto

eu saí
quis voltar
abortei-me
de tudo
e de mim

já não sei
quem eu sou
onde estou
só sobrei
esta sombra

quem me achar
por favor
me devolva
ainda sinto
pesar

*

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

enxame

líria porto

uma colmeia no ouvido
zumbidos – eu fico zonzo
a cera me deixa surdo
:
o mel foi na meninice
ouvia palavras doces
como suspiros

*

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

forja

líria porto

aquecer as palavras de aço
até que –– maleáveis –– possam tornar-se
gentilezas

*

eu sou a minha terra

líria porto

mineira e velha
(em posição de sentir-me)
o corpo igual um mastro
(não se pode curvá-lo)
e a alma - ah a alma
(esta só dá bandeira)

(liberdade
ainda que à tardinha)

*

terça-feira, 22 de outubro de 2013

a maré

líria porto

amarguras escorrem dos olhos
marulham-nos infiltram-se
e salgam a nossa carne
:
marias morrem na praia

*

domingo, 20 de outubro de 2013

neura

líria porto

pisar em ovos
dosar as palavras
fechar os olhos
frear o riso
para contentar
o dono do pedaço
:
isso é vida?

(melhor me enforca
uma corda)

*

camelo

líria porto

quando digo que não presto
que sou um prato indigesto
e insistes em comê-lo
penso
este homem tem estômago
ele me aceita sem molho
:
este me serve

*

tardias

líria porto

há quem mande flores quando morremos
podiam enviá-las enquanto podemos vê-las
retribuí-las colocá-las no jarro da sala

*

clã

líria porto

recebe-nos
com tanta distância
chego a pressentir
a mão que me arreda

melhor eu não ir
ficar no meu canto
deixar vir a mim
quem é do meu bando

*

sábado, 19 de outubro de 2013

piração

líria porto

outubro me atiça
desequilibra-me certezas
e dúvidas

*

raso

líria porto

o olho
é um globo
achatado
nas bordas
um disco
voador
em que etês
me transportam
para estar
entre a estrela
e o asteroide

*

falta

líria porto

no vão do rim
o espaço do não
e a cicatriz

*

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

teclado

líria porto

de pouca visita
nunca vai ninguém vem
a porta sempre trancada
as janelas
mas toca piano
e sua música
atravessa as paredes

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) balangandãs

líria porto

maria é flor que se cheire
usa vestidos godê
o vento vem e maria
segura a cabeleira

anéis colares pulseiras
perfumes brincos de argola
um laço ou flor nos cabelos
a saia –– claro –– de roda

(maria está sem calçola)

*

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

tatear

líria porto

nos pés do menino uma bola
nos olhos da avó a neblina

sentidos mais aguçados
tentavam buscar na memória
o que era ser criança

*

desolação

líria porto

nuvem prenha
chão que racha
é sertanejo
à espera

gado morre
rio seca
sem feijão
vai comer terra?

implorou
já fez promessa
céu é isso
que se nega?

*

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

arrastão

líria porto

teus olhos são rede
eu – peixe

*

terça-feira, 15 de outubro de 2013

extrem'idade

líria porto

na dobra do morro uma pedra fincada
qual fora a amada no aguardo de alguém
nem vento nem chuva conseguem arredá-la
há séculos a pedra espera seu totem

mas ele não vem

*

a_penas

líria porto

pergunto ao vento o que fazer com a liberdade
ele responde - não faças nada
eu vento apenas

é que o sol arde

*

meu pai e eu

líria porto

quando fica bravo
um estouro de palavras
quando fica manso
um silêncio que me mata

podia ter um jeito
de equilibrar a balança
de pôr em pratos limpos
a nossa convivência

*

oh céus

líria porto

corpo
estirado
no esquife
não precisa
camisa
de grife

*

domingo, 13 de outubro de 2013

aos pés da letra

líria porto

o teu olho é raso
disse-lhe o doutor
igual um soldado
ela perguntou

não teve resposta
pôs-se a imaginar
esta parte verde
deve ser a farda

agora ela prende
no fundo do olho
todas as belezas
e passa o ferrolho

*

o cachorro

líria porto

come a carne
(esta parte lhe interessa)
rói um pedaço do osso
enterra o resto

vai vadiar co'as cadelas
devora a carniça
retorna

remexe a terra
suja o focinho
rosna

(um osso precisa saber que tem dono)

então deita
e dorme

*

sábado, 12 de outubro de 2013

enfadonha

líria porto

a mocinha de olhos tardos
puxa-me pelo estômago
reclama chocolate
e homem

*

camaradagem

líria porto

amigo é aquele que abana
que tem a leveza do leque
e troca o mormaço
pela brisa

*

osmose

líria porto

poema é cubo de gelo
dentro do copo de uísque
o entorno deixa-o bêbado
exato a cor da poesia

ninguém sabe quem
é quem

*

embebedar-se

líria porto

navegar dentro da garrafa

*

umidade

líria porto

humildade de água é mostrar-se em forma de mofo

*

autoconhecimento

líria porto

metade da vida eu dormi
metade do sono eu sonhei
e nesse quarto de vida
eu me vi eu me li
olhos voltados pra dentro

(continuo um enigma)

*

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

escalada

líria porto

primeiro pegou seu pé
escalou as suas pernas
depois subiu-lhe aos quadris
rodeou-a na cintura
espiou o seu decote
e até beijou-lhe a nuca

(como se fora uma pulga)

*

pós-parto

líria porto

secou o leite 
e foi preparar docinhos
para a festa de um ano 
da pequena lili

coragem arrancada do útero
mal chorou o seu menino
cujo corpo foi-lhe entregue
em caixa de papelão

*

sem família

líria porto

banguela e de bengala
ficava à porta do asilo
para o banho de sol

um xalinho encardido
cobria-lhe os ombros
fazia o papel
da visita

*


na janela

líria porto

antes vinha um urubu
pousou hoje o bem-te-vi
coçou penas cantou baixo
assobiou para mim

retribuí com olhares
cantei sua cantoria
bem-te-vi ouviu calado
timidez de passarinho

(bateu asas foi-se embora
outra vez fiquei sozinho)

*

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

mula

líria porto

o tempo montou-se-me às costas
mete-me as esporas sem dó
a estrada é ruim pedregosa
troto de_vagar

(vez por outra eu comia um capim
mas o tempo é de seca
e de pó)

*

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

avulsa

líria porto

falar mal eu não permito
não dela  da mulher legítima
a mãe dos seus quatro filhos

(eu era por querer ser
a que atiçava o apetite
eu era a outra)

*

supérfluo

líria porto

o frio na barriga – fome de ti
em nada se compara à falta
de feijão
:
por um prato feito
eu te troco fácil fácil
depois eu te bebo

*

(para o livro sem pecado não tem salvação) maríntimo

líria porto

uma onda rebenta em meu peito
traz à tona o que vem lá de dentro
e me tinge de urgências

*

terça-feira, 8 de outubro de 2013

marujo

líria porto

esse olho infiltrado de distâncias
esse corpo maltratado pelo tempo
essa vontade te buscar sem saber
onde estejas em qual mar
e com quem

*

salta-martim

líria porto

nem que a vaca tussa
tenha que tomar xarope
entrego-te esse envelope
com o salário do mês
:
vai trabalhar vaga-lume
botar recarga na bunda

*

estimação

líria porto

as botinas do francisco
usadas de sol a sol
vão pra escola vão pra roça
sem precisar meia sola

quando muito sujas
vovô engraxa as botinas

*

introspecção

líria porto

ceguei-me e li pensamentos
mas quando voltei a mim só me percebi
aquém do meu nariz

*

lereia

líria porto

enxerga-se a barriga
e lombriga não é
:
pipoca por aí que espiga
está grávida

*

transitórios

líria porto

não somos o que fomos nem o que seremos
estamos o que nos é possível
no momento

*

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

piá

líria porto

eu te vi com trinta minutos trinta horas trinta meses
não te verei com trint'anos – tampouco verei tua irmã

mas estarei por perto

*

cócegas

líria porto

a vista turva desfaleço
então a vida passa uma pena em mim
um pouco de arrepio

*

gota d'água

líria porto

o rio secou e com ele
tudo o que era perene –– a colheita
o barro de moldar panelas a fartura de peixes
as roupas clarinhas

o rio secou e com ele
a vida sertaneja

*

domingo, 6 de outubro de 2013

(para o livro sem pecado não tem salvação) roldão

líria porto

meias arrastão levaram-me ao cais
marinheiros atracaram-se às minhas coxas
quando o navio zarpou voltei para casa

(frouxa)

*



desgraças

líria porto

meus olhos têm limites
veem a_penas uma parte
mais não suportariam

*

o mundo dá voltas

líria porto

cansado de rodar em vãos
aguarda um buraco negro
para se jogar

*

desfalecer

líria porto

o medo faz-nos reféns
a pressão vai aos píncaros
depois nos empurra de lá para o fundo
do precipício

*

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

mandão

líria porto

tão ácido tão azedo
que o limão sentia inveja
do seu destempero

*

conservação

líria porto

passar o coração no multiprocessador
retirar o medo e deitar o bagaço
na salmoura

(coração é carne de segunda)

*

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

amor

líria porto

eu – colibri – adentro-te
enfio meu bico em teu peito
à busca de néctar

*

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

à beira do caminho

líria porto

ancoro no teu colo
nem me olhas

grito que te amo
não me ouves

não me consola
o destino das pedras

*

terça-feira, 1 de outubro de 2013

para-brisa

líria porto

no sábado retiro a neblina
do olho direito

do esquerdo tiro-a em novembro
depois do dia dos mortos

*

pé-d'água

líria porto

em dias de muita chuva
eu nem disfarço a tristeza
ponho a culpa numa nuvem
nus meus olhos
                       têm goteira

*

ultrassomos

líria porto

o fato é que o feto nem fita a foto e furta a cena

*

danado

líria porto

um anjo buliu comigo
passou mel na minha boca
sumiu mas deixou vestígio
:
a pena para o tinteiro
e esse arrepio

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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