segunda-feira, 31 de agosto de 2009

ninguém morre com um barulho desses

líria porto

cansado de se repetir
deu um grito pra espantar a raiva
e um tiro longe do ouvido

*

extermínio

líria porto

incapaz de matar ratos moscas e baratas
criava sapos cobras e aranhas – fizessem eles
o trabalho sujo

*

de reis e rainhas

líria porto

ninguém me aborrece
sou eu quem decide
o rumo da peça
:
xeque-mate

*

domingo, 30 de agosto de 2009

trabalheira

líria porto

meu pai vendia feijão e arroz
no armazém de secos e molhados

mamãe cozinhava feijão e arroz
para onze bocas famintas

*

sherloc

líria porto

o corpo do gato estirado no asfalto
sem nenhuma das suas sete vidas
é prova cabal do múltiplo
assassinato

*



aquela mulher

líria porto

mãos frias olhos vagos
rosto encovado soluços
perambula pelas ruas
pelos becos parques praças
vai a orfanatos conventos
asilos esquinas
presídios

s
o
l
i
d
ã
o
tem companhia

*

favor

líria porto

acerto tudo - do primeiro ao último centavo
: custoso é pagar o que não tem preço

*

intimidade

líria porto

passa a roupa
avesso direito frente costas
gola barra cós

ele vem abraça-a por trás
faz-lhe cócegas amarrota
tudo

dão risadas

*

supremacia

líria porto

desde que nasci toureio a morte
ela não desiste e eu prossigo

um dia quando a infame me quedar
dir-lhe-ei –– eu te venci

cansei-me de viver
                       aqui não fico

*

sábado, 29 de agosto de 2009

insensíveis

líria porto

o pensamento ferve
borbulha como lava
minhoca na pedra

finge dormir
quase funde o cérebro
mas ninguém percebe

*

cafundó

líria porto

passarinho passaroco
no oco do mundo
afundo-me pelos cantos
nu recanto da poesia
desde que nasci
saci desengonçado
atado às raízes

*

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

instabilidade

líria porto

dentro de nós mora um anjo
e também um diabinho
é um tal de puxa empurra
puro desequilíbrio

*

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

amarela

líria porto

linda flor caiu do galho
girou –– bailarina –– girou
e ao tocar o asfalto
virou purpurina

*

ébano

líria porto

quando eu nascer outra vez
quero ser negra retinta
e os meus cabelos crespos
deixá-los à carapinha
brancos só mesmo os dentes
e nos olhos azeviche
carregar a minha áfrica
seu sol ardente sua púrpura

quando eu nascer outra vez
vou dançar com o meu povo
no compasso do batuque
e dentro da pele quente
conduzir-me à altura
da cor e da raça esplêndidas
da beleza de ser gente
no coração –– na estatura

*

cuidado

líria porto

o diabo já foi anjo
conhece os caminhos do céu
e sabe como ninguém
fingir-se santo

*

pau do cerrado

líria porto

segredos do vento
de sopro e assovio
ninguém os decifra
nem nós que nascemos
em ventania

de terras tão planas
de galhas torcidas
ao vir pras montanhas
eu trouxe e te entrego
o sal da saliva

*

indignação

líria porto

direto como um soco
com razão fico vermelho
vivam em paz os palestinos

*

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

(publicado no livro olho nu - ed. patuá) amélia

líria porto

ficava lá disponível
limpa macia perfumada
igual blusa no cabide

ele vinha usava-a
voltava-se para a parede
dormia
partia pela manhã

(foi visto no shopping
de roupa nova)

*

terça-feira, 25 de agosto de 2009

cadela

líria porto

ando ela anda
deito-me ela se deita
sento-me ela se senta
ou fica ali do lado

minha sombra não me deixa
às vezes levanta as orelhas
e sacode o rabo

*

a tia

líria porto

o traçado da letra
a delicadeza da palavra
maria da glória - simples
extraordinária

*
o dia promete
mas não cumpre
*

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

es_fera

líria porto

quem dera a terra
rodasse para o outro lado
e pudéssemos retornar
ao ponto de partida

a infância
é um templo
lindo

*

os miseráveis

líria porto

quem janta sua fome espanta
jante mal ou jante bem

terrível é quem não janta
e não almoça

e não tem

*

de mau a pior

líria porto

o sol sobre o olho
o sal sobre o molho
o mal sobre o bem
o tal do olho gordo
o estorvo o atrapalho
o dente de alho
na boca de alguém

*

neblina

líria porto

como um cachorro que não abana o rabo
ou um passarinho de asas quebradas
sem ti o mundo todo se embaça
sem lua e sem azul

*

domingo, 23 de agosto de 2009

pasmos

líria porto

entre velho e novo
um ser boquiaberto
sem saber ao certo
se foi a galinha
ou o ovo

entre certo e errado
um nunca satisfeito
um sempre sistemático
truncado pelo meio
sem arremate

entre muito e pouco
um sujeito rouco
a pedir um cado

entre um e outro
nada nada
nada

nabo

*

fósseis

líria porto

paixões e amores acabam
perecem evaporam-se

muita vez não sobra coalho
nenhuma atitude dócil

lembramo-nos dos que amávamos
somente em detalhes sórdidos

e sequer consideramos
quão fomos intolerantes

inóspitos
ignóbeis

*

pega

líria porto

não entendo tua pressa
mal fizeste vinte anos
de tudo pouco conheces
nem tristezas nem espantos

não corras tanto menino
vai devagar ri um pouco
aproveita tuas f(r)estas
olha as flores ouve o canto
a idade um dia pesa
os olhos murcham e o pranto
inundará duas pistas
não te aceleres –– o tempo
é bem maior que a avenida

) vruuuummmmmm (

espera guri espera
tenho presentes comigo
um bombom um salto um grilo
quero te dar castanhas
ensinar-te minhas manhas
olhares além do umbigo

*

eutanásia

líria porto

abandono descuido desprezo
condenaram o amor à morte lenta

) procura-se um cúmplice – um companheiro
capaz de desligar o aparelho (

*

sábado, 22 de agosto de 2009

arrupio

líria porto

vento varre
vai dum lado doutro
doutro
junta cisco
dá uns sopros
tenho medo dos diabos
desses redemunhos

*

turista

líria porto

igual morcego
e no ponto cego
nossa jugular
:
yo quiero sangre
verde amarillo

*

comprimido

líria porto

afoga a tristeza no copo
bebe um antidepressivo

*

brevê

líria porto

vem o dia vem a noite
esta estafa deixa a alma
amarrotada

vaca amarela pulou a janela
quem morrer morreu
ela ele ou eu

) a vida pasta (

*

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

ruína

líria porto

sair do circuito
fugir do ruído
é doido e é doído
e é seu intuito
arruinar-se
diluir-se
fluidificar-se
descuidar-se
ir-se

(f)ui

*

registro

líria porto

helenice não

e a mãe feliz
batiza-a
flor-de-lis


*

terça-feira, 18 de agosto de 2009

namoro

líria porto

eu na janela
o sol no horizonte
e olho no olho
nós nus

*

concorrente

líria porto

um dos segredos
é a disputa de quem se diz
puta

*

putinha

liria porto

na entrega do produto
a lua tudo fazia para o sol
não ficar puto

) e via estrelas (

*

bolhas

líria porto

ele pensava nela
e ela pensava
na morte da bezerra

quem acha que acerta
erra redondamente

*

virgem santa

líria porto

vão precisar de um bravo
para exercer tal façanha
o mato cresce e tem onça
entre as pernas dessa aranha

*

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

cartas

líria porto

palavras silenciosas
fechadas em envelopes
troam como tambores
levam para as pessoas
notícias boas
piores

*

diferenças

líria porto

aquele que nos leva
a fazer com alegria
todas as tarefas
é líder

o fracote
a nos sujigar
a usar chicote
é chefe

*

gerações

líria porto

derrubar a parede
alargar o corredor

permitir que a luz se adentre
mudar o lugar das sombras

aprender - a experiência
dos ancestrais é inócua

*

sábado, 15 de agosto de 2009

pós choro

líria porto 

(c)alma voltou - veio mansa 
acomodou-se no canto 
aproximou-se aos poucos 
acalentou-me 
fez-me dormir 
                      qual criança 

*

consideração

líria porto

lavou o corpo da morta
com água morna

a velha não gostaria
de banhar-se em água fria

*

disfarce

líria porto

debaixo da capa a culpa
as emoções proibidas
as marcas de batom

(e as manchas roxas
nas coxas)

*

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

mundos e fundos

líria porto

olhos fechados corpo quieto
sem mover um músculo

e o pensamento solto
a recordar planejar imaginar

ninguém sabe a extensão
dos sonhos

*

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

colcha de retalhos

líria porto

ao doarmos órgãos
somos recicláveis
e não descartados
como lixo humano

*

terça-feira, 11 de agosto de 2009

tantã

líria porto

forte como a pétala
fraca como a muralha
tenho cílios de arco-íris
alma de batata-palha

*

(publicado em cadela prateada - ed. penalux) - ganidos

líria porto

finquei todo meu desejo
no branco lençol do leito
deitei-me só e de borco
e assim eu em decúbito
abraçada ao travesseiro
farejava o teu cheiro
qual um cachorro

meu corpo de tanta ânsia
derramava a substância
advinda do meu cio
as lágrimas me afogavam
afundavam-me em areia
movediça

a fresta entre minhas pernas
jogadas de qualquer jeito
abrigava a rejeição
as ausências repetidas
das vezes que te chamei
sem retorno

não vieste não virás
e o vão do meu umbigo
a ganir nos teus ouvidos
não te deixará

*

ruindade

líria porto

a dor sem entranha montava-lhe as costas
fincava o ferrão a espora o chicote
galopa galopa galopa

o pobre ancião já sem forças gemia
eu não posso eu não posso
eu n ã o  p o s s o

deus e o diabo
espiavam

(sem dó)

*

não tinha dono

líria porto

viu um cachorro
acompanhou-o

viver sem carne
é osso

*

(publicado em cadela prateada - ed. penalux) - fôlego

líria porto

quando nasci
não tinha anjo disponível
então um diabinho com um tridente
espetou a minha bunda e disse – vai
cai na vida
não tens outra saída

*

conto de bruxa

líria porto

era uma vez acredite
uma criança mirrada
espertinha pá-virada
que nasceu lá no planalto
malcriada topetuda
não queria ser rainha
e de longe admirava
quem freios também não tinha

parecida com o pai
a origem não negava
sua língua era ferina
suas unhas afiadas
os olhos de folha seca
cor acanhada mortiça
disfarçavam muito bem
os desperdícios da alma

dos filhos a mais feiosa
doentinha magricela
crescia a erva daninha
sem nenhuma contenção
junto ia o coração
que pendia para o lado
onde o fraco se rendia
onde a corda rebentava

já adulta pobre moço
aquele que a amou
pois com tanta rebeldia
nem a casa ela varria
não julgava obrigação
essa doida era varrida
ficava puta da vida
explodia-se ao fogão

branquearam-se os cabelos
de vermelho se coraram
e um brilho se instalou
mudou então seu olhar
assumiu sua loucura
acendeu o caldeirão
e em fogo muito brando
cozinhou-se com_paixão

hoje voa vaga flutua
tricota faz doce cose
vira a noite pelo dia
sua alma não encolhe
pois ela ainda acredita
montada numa vassoura
que pode mudar o mundo
ser avó feliz  e doida

*

deslírio

líria porto

de manhã vejo no céu
uma lua de papel
escrevo nela meu verso
pra dizer ao universo
ô rima besta

*

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

caranguejo

líria porto

não quero saber de ti
nem hoje nem nunca mais
mas é bom te prevenir
se vieres por aqui
eu volto atrás

*

decrépita

líria porto

minh'alma velha de guerra
emaranhada no corpo
atada dentro das vestes
parece que nesse inverno
desistiu dos voos

não cria nada que preste
merece_dor

*

domingo, 9 de agosto de 2009

(publicado no livro olho nu - ed. patuá) caldo

líria porto

eu mordia a boca dele
sabia a peçonha na língua
lambia e bebia a saliva
era para engolir ele
morrer dele
do adocicado da víbora

*

a_deuses

líria porto

subo e desço a serra
de um lado e doutro
os ipês me acenam

amarelos loucos

é só vir a chuva
é só vir o vento
já é quase agosto

*

precisão

líria porto

um cadinho do teu corpo
um borrifo do sorriso
qual a terra quando chove
ou o galo o passarinho
ao nascer do sol

*

sábado, 8 de agosto de 2009

atração

líria porto

são joão tão bonito
naquela bandeira
e eu tão aflita
entrei na fogueira

a vida era boa
tirei tal proveito
subi no seu colo
deitei no seu leito

queria um beijo
o primeiro da fila
dos seus olhos verdes
bebi clorofila

agora meu santo
não sei de mais nada
paixão é veneno
caixão e mortalha

*

voos

líria porto

o poeta usa o pensamento
mas às vezes abre os braços
e espera o vento

*

poliglota

líria porto

inglesa francesa espanhola portuguesa
pouco importa - queria era beijo
de língua

*

nevoeiro

líria porto

pântano lamaçal areia movediça
e a preguiça de acender o sol
de beber à superfície

*

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

oh

líria porto

mudar de casa ou de vida
livrar-nos das velharias
dos badulaques e tralhas
requer mais do que dinheiro
estrutura analista
ou paciência
de jó

é preciso sobretudo
ter-se um saco
de filó

*

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

lágrima

líria porto

veio
foi-se

estrela
c
a
d
e
n
t
e

*

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

adelice

líria porto

a doida da nossa infância
entrava / saía pulava a janela 
falava sozinha
comia com os gatos 
xingava os moleques
sacudia os ombros

morreu em barbacena
no chá da meia-noite

*

sujeito a adjetivos

líria porto

bonito era meu avô
aqueles bigodes fartos
barriga proeminente
pelos grisalhos
olhar substantivo

*

preguiça

líria porto

não há como recuperar oportunidades
momentos e talentos negligenciados
atirados à vala das coisas
imprestáveis

*

terça-feira, 4 de agosto de 2009

abismados

líria porto

na escuridão do tempo
quanta vida se perdeu
resvalou-se pras profundas
tu não te lembras
nem eu

*

cavalgada

líria porto

dei a ele meia lua
dele ganhei meio mar

fomos sócios
somos cúmplices

*

domingo, 2 de agosto de 2009

per secula seculorum

líria porto

tornei-me o invólucro da tua boca
sou eu o teu beijo permanente
ao beijares outras bocas
beija-as sôfrego
estarás a beijar-me como louco
em todos os sabores
e indecências

*

aclamação

líria porto

quem pudesse ver e visse
a elegância de clarice
poderia adivinhar
em seus pés
as sapatilhas

ágil como uma corça
esguia igual espiga
quando clarice gira
deus do céu
virgem santíssima

*

sábado, 1 de agosto de 2009

viuvez

líria porto

vestir-se internamente de sem cor
minguar-se à penúltima gota
e se um dia houver forças
reviver

*

malabares

líria porto

) palavras seduzem-me
fascinam-me (

faço malabarismos brinco
jogo-me (con)sigo-as
não há como me sentir sozinha
nesta companhia

) sem lapso
nem papelão (

por estas e outras eu sofro
por festas e ostras prossigo
quem quer vinho venha
às brenhas da bruma

) tenha risos motivos
borbulhas (

*

bip.o_lar

líria porto

abismo intransponível
entre alma e corpo

agarrou-se às asas do amor

salvou-se do inferno
e dos transtornos

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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