na ponta do lapso

líria porto

já vivi mais de três quartos
na verdade quatro quintos
sei que a parte derradeira
(por certo a mais difícil)
pode ser interrompida
a qualquer momento

*

. ceticismo

líria porto

entre minhas coxas
cochichas o nome das outras
não me incomodo
:
todo amor é provisório

(duradouro
é carma)

*

salvo-conduto

líria porto

se não para a morte
necessito um passaporte
para a loucura

*

umbigo

líria porto

dei de matutar
entregue a milhões de grilos
de falar com meus mamilos
que o centro da barriga
é o poço da vaidade
frequentado por lombrigas
e por egos incapazes

*

cuidados

líria porto

na casa da bisavó
debaixo do filtro de barro
uma bacia esmaltada
aparava os pingos d'água

*

ranhuras

líria porto

nesta altura dos meus dias
não me permito frescuras

ciscam em torno dos meus olhos
milhões de pés de galinha

*

ru(s)gas

líria porto

as garras do tempo
afundam as ranhuras
na pele dos homens
e das mulheres

*

estações

líria porto

na primavera
a infância

no verão
a juventude

no outono
homens maduros

no inverno
arribação

*

revisão

líria porto

meu amor gostava dela
e deve ser gente boa
a fulana que desprezo

confesso minha fraqueza
por defeito do meu ego
detestar uma pessoa

*

pulguenta

líria porto

chama-se vida
e é vira-lata

ao me ver abana o rabo
lambe-me as mãos
e vez em quando
rosna

*

suspiros

líria porto

não vou engordar –– eu me proponho
e talvez até emagreça
se conseguir estancar a agonia
que me faz devorar
guloseimas

*

delator

líria porto

índio pinto pequeno
usa dedo indicador
para constranger
a tribo

*

disposição

líria porto

um pássaro

a suportar o peso do corpo

não – melhor uma borboleta

apenas bater asas

mesmo que o voo não atinja
as nuvens

porém hoje um leque

a abanar a flor

* 

ser_tão

líria porto

deus é próprio o mandachuva
fosse justo olhava tudo e todos
não haveria seca nem inundação
:
deus é patrão
e protege os b(r)ancos

*

elite

líria porto

brancos de almas pardas
cagam e disfarçam seu ranço
com perfume francês

*

equívocos

líria porto

de costas para a luz
projeta-se a sombra
e não se vislumbra
o futuro

*

dádiva

líria porto 

a vida
esse visgo
a gente se apega
ainda que doa
a vida é bela

*

deprimidos

líria porto

a tristeza que perdura
ela mina nossas crenças
reduz-nos a temperatura
transforma-nos em molambos
(mortos-vivos)
atirados para os cantos
sem presente
sem futuro

*

contágio

líria porto

quando a vontade de nada
domina a mente e o corpo
a gente fica doente
exposta às bactérias

(e não adianta remédio
onde há indiferença)

*

apelido

líria porto

chamavam-me sardinha
(as pintinhas no nariz)
e eu lavava o rosto
com água de arroz
na esperança de apagar
o cognome

*

dona mundina

líria porto

filha de árabe
submissa ao marido
(um português das arábias)
depois que mamãe teve alzheimer
não obedeceu mais ninguém
nem doutor nem cuidadora
e falou palavrões

[meu pai esquecido na (al)cova]

*

de lã

líria porto

aos pobres
escola casa comida
e sobretudo

*

chantagem

líria porto

a vida é submissa
ao bordão da morte
:
ou dás
ou desces

*

sicrano

líria porto

passou e me deu garupa
seguimos à encruzilhada
apeei tomei meu rumo
ele foi pra outro lado
:
jamais o esquecerei
onde estará?

*

oblíquo

líria porto

igual a torre de pisa
eu tombo até certo ponto
mas não desabo

*

movimento

líria porto

faço graça tiro sarro
mas sou tímida
e sou triste

isso não muda nada
a terra gira

*

extermínio

líria porto

tudo nos conformes
não haverá nenhum pobre
no tucanistão

serão removidos
ossos destroços e co'as cinzas
serão pintados os muros

(câmaras de gás
bananas de dinamite
o inferno é o limite)

*

boca suja

líria porto

comprei pimentas
malagueta e de cheiro
mais pela cor
que pela ardência

(ardidas me lembram
palavrão)

*

apaga_dor

líria porto

quando meu pai morreu
mamãe ficou apática
quando minha irmã morreu
(sua filha caçula)
mamãe se esqueceu de tudo
(até de quem era)
e mergulhou
na própria
finitude

*

decorativo

líria porto

furtivo –– o traidor
não vale um real furado
mas acumula milhões

*

predição

líria porto

a trombeta anuncia liberdade
será este um anjo enganador
a passar mel na boca
dos incautos?

*

poetinha

líria porto

o sol é farol a lua lanterna
eu vejo esse mundo com duas antenas
a interna e a externa

(igual um menino)

*

sombra

líria porto

aporto
tu cais
eu rio
me aterras
eu sonho
despertas-me
:
por amor
deixa-me
em paz

*

inexorável

líria porto

a velhice tem cheiro de mofo
aparência do que é descartável
todos querem a presença do novo
ao velho se lhe resta
a antiguidade

(o destino da musa
é o museu)

*

mulherio

líria porto

na festa de oitentanos

vovó maria
mãe da minha mãe
disse à minha irmã
–– minha neta
dê cá sua neta
:
enfileiradas
as cinco gerações

*

crepuscular

líria porto

beber teu sangue até te deixar azul
beijar teu sol na boca –– sujar-me
de batom

*

reino animal

líria porto

nem pobre nem rica
mulher branca – classe média
dependente do marido
tratada como titica
a oprimir negros e índios
e assimilar as maldades
das quais ela própria
é vítima

*

madame mim

líria porto

nem santa nem anjo tampouco diaba
mulher como tantas não manda
recado

*

pressão

líria porto

coração de mulher bate
coração de homem espanca
melhor seria tentassem
recordar qual o compasso
do coração das crianças

*

no ringue

líria porto

um vírus pôs-me a nocaute
ainda farejo a lona
(golpe baixo)
de longe escuto a contagem
porém acabou meu fôlego

(jesus me abane)

*

os carrascos

líria porto

mataram dona marida
depois enjaularam o urso
(nossa aurora boreal)
numa cela solitária
(espécie de sepultura)
no polo norte
onde qualquer convívio
é quase impossível
e a noite dura
uma vida

*

testículo (pequeno teste)

líria porto

olho no olho –– de igual para igual
machão não tolera atrevimentos

*

mordaças

líria porto

a palavra presa
o grito calado
o berro na goela
a dor de garganta
a mão no pescoço
a vida de servo

*